Um povo que resiste, que carrega na memria sculos de dispora e perseguio, mas tambm de cultura, tradio e luta pela autodeterminao. Assim o povo romani — ou povos ciganos —, composto principalmente pelas etnias calon, rom e sinti, que integra a diversidade dos povos tradicionais do Brasil.
Mesmo com esse legado, o povo romani segue entre os grupos mais invisibilizados do pas, apontando pouca presena no debate pblico e nas polticas pblicas. Como outros povos tradicionais, reivindica direitos bsicos, como moradia digna, o educao e ao trabalho.
A srie de reportagensInvisveis do Brasil, da Agncia Brasil, publicada por ocasio do Dia Nacional doCigano(24 de maio), amplia a voz dessas lideranas e revela as principais demandas e desafios enfrentados pelo movimento romani no pas.O dia foiinstitudo em 2006, por meio dedecreto presidencial, em homenagem ao povo romani e sua padroeira, Santa Sara Kali.
Estima-se que, no Brasil,a populao cigana (tambm conhecida como romani) seja de 800 mil a 1 milho de pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE).
O povo romani tem uma histria de dispora, higienizao tnica, genocdio e perseguio, inclusive, pelos nazistas. Um dos 28 povos tradicionais relacionados noDecreto n 8.750/2016,os ciganos habitam o Brasil pelo menos desde 1574,ano em que o primeiro calon, Joo Torres, chegou ao pas com a mulher e os filhos, vindo de Portugal.
Em 1686, o pas comeou a deportar ciganos para o Brasil. Documentos portugueses datados daquele ano registram que eles deveriam ser degredados para o Maranho. Antes, eram levados somente para as colnias africanas.
O multiartista, pesquisador, ativista, jornalista e produtor cultural Aluzio de Azevedo destaca que as pessoas de sua etnia, a calon, sempre tiveram uma ligao com a Pennsula Ibrica, ainda que no fossem de l. Ele tem a clareza de que as manifestaes de repulsa que os colonizadores do Brasil direcionavam aos calon eram reproduzidas no trato com as outras etnias.
"Portugal e Espanha sempre rejeitaram muito os ciganos e os proibiam de falar a sua lngua, de praticar ofcios tradicionais, como a leitura de mos, de uma srie de coisas. Por exemplo, de ficar mais de 48 horas em um mesmo lugar. Da o nomadismo ser uma coisa um pouco forada. E as penas eram degredo para seu pas e suas colnias", explica.
Segundo Azevedo, por trs sculos, Portugal conservou a postura de repelir esses povos."Alm dessas polticas persecutrias e colonialistas que Portugal fez, chegando ao Brasil, o Brasil seguia as mesmas regras, porque era uma colnia portuguesa. Era Portugal quem mandava. E, depois, isso permaneceu no Estado brasileiro, quando ele se liberta istrativa e politicamente de Portugal. Continua com omodus operandi", observa.
"Durante sculos, o Estado brasileiro foi muito mau com os ciganos, foi muito ruim. Inclusive, ocorreram episdios que ficaram conhecidos como as correrias ciganas, que era a polcia invadir acampamento, matar todo mundo e provocar a correria de todo mundo em fuga", emenda.
"Isso aconteceu at muito recentemente, com mais fora at a dcada de 1970, mas ainda acontece", completaAluzio de Azevedo.
No Brasil, entre os problemas ainda enfrentados por essa parcela da populao esto o racismo, o preconceito e a falta de o a polticas pblicas especficas, como apontam lideranas ciganas entrevistadas pela Agncia Brasil.
"Sempre o racismo, o preconceito e a discriminao tm nos distanciado de armos as oportunidades e feito uma diferena entre ns e a sociedade em geral. Nosso sangue vermelho, igual ao dos outros, tambm sentimos fome, sede, dor, alegria, paixo. Somos seres humanos comuns, iguais a todos", diz o presidente istrativo da Associao Nacional das Etnias Ciganas (Anec), o calon Wanderley da Rocha.
O fundador da Associao de Preservao da Cultura Cigana (Apreci), Claudio Iovanovitchi, rom do Paran, argumenta que o povo romani no est pedindo nada excepcional. "No queremos inventar a roda, o fogo, novos caminhos para as ndias, coisas diferentes. No isso. Queremos o que j existe: o o educao, escola, sade, habitao. Tudo que queremos j existe. Respeitando as especificidades dos ciganos", pontua.
"Eu no quero gueto. No quero gueto na escola. Quero que meu ciganinho seja bem-vindo na escola, com professores preparados", declara.
Em um de seus artigos cientficos, intituladoA incriminao pela Diferena, o pesquisador Felipe Berocan Veiga pontua que "os ciganos ora so vistos como uma sobrevivncia ou um arcasmo, ora como uma recorrente ameaa".
Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), ele explica que a averso ao povo romani tem "razes profundas no imaginrio, na iconografia, na literatura e nos contos populares", que acabam ativando "medos infantis e evitaes inconscientes". E que estes, por sua vez, so capazes de aguar os mais intolerantes a cometer atos de "violncia mais explcita" contra membros de suas comunidades.
Desde o sculo 16,os povos ciganos ainda pleiteiam a contagem atualizada da populao e a vigncia do Estatuto dos Povos Ciganos, a ser criado por meio de projeto de lei em tramitao no Congresso Nacional. Atualmente, a matria (Projeto de Lei n 1.387/22) est parada na Cmara dos Deputados.
Apresentado pelo senador Paulo Paim (PT-RS), oprojeto j foi aprovado na Casae considerado imprescindvel pelas lideranas porque obrigaria o Estado a cumprir seus deveres para com os ciganos.
Plano Nacional
Em agosto de 2024, o governo federal instituiu oPlano Nacional de Polticas para Povos Ciganos,que engloba aes previstas para serem implementadas no perodo de 2024 a 2027 e oficializa a criao de seu comit gestor. Com o Decreto 12.128/24, o Brasil se tornou o segundo pas do mundo a lanar uma poltica nacional voltada estritamente para o povo romani.
Ao todo, oplano foi estruturado em dez objetivos, que envolvem combate ao anticiganismo, reconhecimento da territorialidade prpria dos povos ciganos, direito cidade, educao, sade, documentao civil bsica, segurana e soberania alimentar, trabalho, emprego e renda e valorizao da cultura.