Estrutura de sade insuficiente e vulnerabilidade dos territrios, combinadas a aspectos socioculturais, expem a populao indgena a mais uma invaso; desta vez, de um vrus de alcance mundial que avana em Mato Grosso. O estado, considerado o novo epicentro da pandemia no Brasil, tem 43 das 305 etnias indgenas do pas.
Somando os dados dos cinco Distritos Sanitrio Especial Indgena (DSEIs) de Mato Grosso, pelo menos 423 indgenas esto infectados atualmente pela covid-19, alm dos 58 casos suspeitos. No estado, foram confirmadas 45 mortes no ltimo boletim daSecretaria Especial de Sade Indgena (SESAI).
No entanto, o Comit Nacional de Vida e Memria Indgena, coordenado pela Articulao dos Povos Indgenas do Brasil (Apib), j contabiliza59 mortes de indgenas no estado, que o terceiro do ranking.
A exposio dos indgenas a covid-19 foi evidenciada nacionalmente com o surto do vrus entre os xavantes, tronco lingustico macro-J e a etnia mais populosa do estado. So 142 casos confirmados e 28 mortes de acordo com a SESAI. No entanto, a Federao dos Povos Indgenas de Mato Grosso (FEPOIMT) apontamais de 200 casos de infeco;o cacique Domingos Mhr teria sido a 36 vtima do coronavrus entre os xavantes – a primeira foi um beb de 8 meses.
De acordo com a FEPOIMT, a covid-19 j chega s sete regionais de sua atuao; alm da regional Xavante, o avano do vrus preocupa as regionais Xingu e Cerrado-Pantanal. Nesta ltima, principalmente entre o povo Bororo-Boe.
Relatos e vdeos que denunciam o que chamam de 'genocdio' chegam todos os dias indgena Bakairi ElianeXunakaloatravs das redes sociais. Omais recentemostra uma indgena do povo Karaja, na regio Araguaia, sofrendo com os sintomas.
“ difcil no ter assistncia mdica e a gente sofre por no conseguir ajudar tambm. Tem dias que eu no durmo”, lamenta Eliane, que membro do Instituto Yukamarino de apoio s Mulheres Bakairi. De Cuiab, ela d e ao seu povo nas aldeias.
Eliane explica que a covid ainda no fez vtimas entre os Bakairi, que atualmente tem sete infectados com sintomas leves, mas o avano e as consequncias da doena amedrontam.
“A gente fica preocupado pelo que os xavantes esto vivenciando. Temos recebido muitas notcias do Alto Xingu, que j tiveram mortes de lideranas Kalapalos e Iaualapitis. Na divisa entre Mato Grosso e Rondonnia, a situao tambm est ficando tensa”.
Aldeia indgena em Sangradouro. Foto: Secom-MT
Alm da rpida contaminao, o impacto da doena tende a ser severo entre os indgenas devido s especificidades de sude.
"Muitos no so imunizados como a populao branca e, assim, no produzem os anticorpos que defendem o organismo, ainda mais no caso de uma doena desconhecida. Tem tambm a questo cultural de que muitos que no fazem uso de medicamento farmacuticos e antibiticos", destacaValdemilson Ariabo Quezo, diretor da FEPOIMT.
Conforme relatrio tcnico da Operao Amaznia Nativa (OPAN), uma pesquisa realizada entre os Xavante das Terras Indgenas (TIs) So Marcos e Sangradouro constatou cerca de 66% dos Xavante com Sndrome Metablica, condio na qual os fatores de risco para doenas cardiovasculares e diabetes ocorrem em um mesmo indivduo.
Um tcnico de enfermagem que preferiu no ser identificado, contou que o ltimo ms foi o pior em infeces e mortalidade nas aldeias de So Marcos. Ele citou pelo menos trs primos e um sobrinho que morreram com covid-19.
“Muita gente pegou, mas principalmente os pacientes diabticos e hipertensos. Um mdico e uma ajudante enfermeira estiveram aqui para orientar os pacientes e quando o caso era grave eles encaminharam para a UPA do municpio. A maioria no resistiu. Da UTI saram s duas pacientes xavantes. Alguns faleceram na aldeia”, disse.
Os mais de 45 mil indgenas que vivem em Mato Grosso so atendidos por seis DSEIs – unidades gestoras do Subsistema de Ateno Sade Indgena (SasiSUS), ligados Secretaria Especial de Sade Indgena (SESAI) – que realizam o atendimento primrio nas comunidades.
O o sade fica mais difcil nos estgios avanados da doena, que exige atendimento dos hospitais de mdia e alta complexidade. Porm, estas localidades j no dispem de leitos e equipe tcnica nem para atender a demanda comum dos municpios. Vale lembrar, segundo o ltimo boletim da Secretaria do Estado de Sade (SES), Mato Grosso tem 93% dos leitos de UTI ocupados.
“Quando retiramos o indgena do seu territrio, at ele chegar a um hospital na cidade, ar por triagem e diagnstico, a chance de sobreviver bem menor. A estratgia ter um espao de atendimento para que de fato consiga atender um grande nmero", explicaValdemilson, que indgena Balatipon, povo conhecido como Umutina.
Por isso, a reivindicao atual das organizaes indigenas em Mato Grosso a construo de um hospital de campanha, em Barra do Garas, onde o territrios Xavante est localizado.No dia 2 de julho, o prefeito da cidade informou que encaminhou ao presidente Jair Bolsonaro o pedido para a instalao em regime de urgncia.
O municpio apontou ainda que essa seria a nica soluo, mas no dispe de estrutura fsica, equipamentos, materiais, mobilirio, insumos e recursos humanos necessrios para montar a unidade, que seria gerida pelo Exrcito ou organizao social coordenada pela Sesai.
“Necessitamos da ajuda do Ministrio da Sade e do Estado para que essa ao seja concretizada com a mxima urgncia”, disse Roberto Farias.
Enquanto isso, indgenas seguem morrendo a espera de uma vaga de leito de UTI.
Aldeia Umutina, em Barra do Bugres. Foto: Secom-MT
Impactos socioculturais
Foi assim que a chegada da covid-19 impactou o povo Balatipon-Umutina, na extenso do municpio de Barra do Bugres.H cerca de 15 dias, uma anci faleceu em uma das aldeias, enterrando consigo saberias de 74 anos que, na cultura indgena, so transmitidas de forma oral.
“Ela no era uma liderana poltica, por exemplo, mas tinha muito conhecimento preservado sobre a histria do nosso povo”, lamenta o educador Luciano Ariabo Kezo, guerreiro balatipon da aldeia Bacalana.
O jovem conta que j so 19 casos confirmados entre indgenas umutinas, que esto espalhados em trs das seis aldeias em territrio onde residem cerca de 600 pessoas, sendo 400 fixas.
“A gente no tem estrutura nenhuma para dar conta dessa situao. Nossa anci faleceu porque no conseguiu vaga em UTI; nem sequer se preocuparam em fazer a regulao. Aqui em Barra do Bugres tem uma semi-UTI, apenas uma. O que est salvando a gente a experincia em medicina tradicional e a f do povo”.
Distante das estruturas bsicas, os Umutina vem se organizando por conta prpria para conter o avano do vrus. Barreiras de isolamento nas aldeias foram construdas sem nenhuma ajuda governamental, o que vem sendo comum em muitos territrios indgenas. Ariabo Kezo, que tambm artista e defensor das causas indgenas, tambm usa seu canal do Youtube para divulgar a situao do seu povo e arrecadar recursos.
Uma campanha realizada pelo prprio povo Balatipon, da aldeia Bakalana, viabilizou a compra de 15 EPIs. Itens como termmetros foram doadas pela Associao Balatipon a profissionais de sade da regio. E alm dessas aes independentes, o povo conta com apoios individuais de pessoas fsicas e ONGs. Indgenas Halti, conhecido como Pares, tambm se compadeceram doando kits de alimentos e 300 mscaras aos parentes Umutina.
“Nossa maior dificuldade hoje nos mantermos independentes nas aldeias. S temos renda quando conseguimos comercializar pescado e artesanato. Por isso, os povos precisam de uma ateno especial por parte do governo tambm no sentido socioeconmico. No se trata mais s dos setores da sade, est afetando tudo”.
Ariabo Kezo lembra que esta no primeira vez que uma tragdia deste tipo acontece entre o seu povo, que j chegou a sobreviver com apenas 23 indgenas aps epidemias como o sarampo. Desse modo, a nova doena tambm afeta a sade mental da populao, diante das constantes ameaas de extino.
“Exemplo disso foi a esposa do Raoni Metuktire, que faleceu com problemas no corao; a filha dela relatou que foi por conta do terror da covid-19. Estamos tentando limpar a mente das coisas negativas para tengar garantir a comida do dia seguinte e manter a nossa imunidade”.
Liderana Kayap reconhecidainternacionalmente por sua luta pela preservao da Amaznia, o prprio caciqueRaoni Metuktire, 89 anos, est internado com um quadro depressivoem um hospital particularem Colder (600 km de Cuiab) destequinta-feira (16), sendo transferido para Sinop neste domingo (19) aps piora no quadro.
Liderana indgena mundial, Cacique RaoniMetuktire est internado em Mato Grosso com quadro depressivo. Foto: AFP
Fazendeiros chegam, mas a sade no
O gegrafo e ativista Hiparidi Toptiro, indgena Xavante, conta que a exposio ao novo coronavrus agrava diante das particularidades de povos cujos rituais e prticas culturais que so essencialmente coletivas e geram aglomeraes. Assim, a conscientizao das comunidades acaba sendo mais um desafio.
“H quatro meses, o nosso povo achou que era uma doena para o branco e que ela no chegaria fcil at ns. Muitos no querem ir para a cidade, querem se tratar na aldeia e continua contaminando. Esse negcio de UTI apavora, a ideia que quem sai, no volta”.
Hiparidi conselheiro daAssociao Xavante War e denuncia presses nos terrtrios Xavante.
“Muitos ruralistas entram e tiram indgenas para trabalhar em suas fazendas e assim o risco multiplica. Esto aliciando nossos caciques enquanto estamos doentes. Para mim proposital o que os polticos esto fazendo, eles querem arrendar nossas terras. Meu povo est assustado”.
Conforme a OPAN, em julho de 2019, o MPF em Barra do Garas apresentou uma Ao Civil Pblica (A) em que solicita, dentre outras coisas, o fechamento do traado da BR-158, trecho que corta a TI [Terra Indgena] Maraiwatsd, rea habitada por xavantes. No entanto, em maio deste ano, alm do fluxo intenso de caminhes, os indgenas flagraram obras de patrolamento da rodovia.
No caminho contrrio preservao dos territrios indgenas, a Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso (ALMT) aprovou, em plena pandemia, o Projeto de Lei Complementar (PLC) n 17/2020, de autoria do governador Mauro Mendes (DEM), que autoriza o registro de propriedades em sobreposio a terras indgenas em fase de estudo, delimitadas ou declaradas pela Fundao Nacional do ndio (Funai).
Por outro lado, enquanto o branco chega, os servios da DSEI Xavante no alcanam com agilidade todo o territrio.
“Falta estrutura. Aqui na regio de Sangradouro tem cerca de 57 aldeias, por exemplo. A sade xavante chega apenas em uma aldeia grande, mas e nas outras aldeias? No tem uma distribuio. Estamos desprotegidos, cada um est fazendo o que pode diante dessa calamidade".
Conforme o relatrio tcnico da OPAN, dados do DSEI Xavante apontam que apenas 8,5% das aldeias contam com uma Unidade Bsica de Sade Indgena (UBSI). Isso significa que, em boa parte do tempo, cerca de 91,5% dos indgenas ficam descobertos de medidas de vigilncia sade, o que prejudica a deteco precoce dos casos suspeitos do novo coronavrus.
Cada polo-base de sade indgena que atende os Xavante responsvel por 3.572 pessoas, o que representa a maior relao entre os distritos do estado. No DSEI Xingu, que ocupa a segunda posio neste ranking, cada polo atende 2 mil indivduos.
"Com relao disponibilidade de Casas de Apoio Sade Indgena (Casai), a situao ainda mais dramtica: so 10.716 indgenas para cada uma das unidades no DSEI Xavante. Quase cinco vezes mais que o segundo colocado, o DSEI Cuiab, com 2.167 pessoas por Casai".
Hiparidi e o tcnico de enfermagem tambm reclamaram da gesto da DSEI Xavante e lentido de aes.
“O mundo inteiro escutou que esse vrus estava se espalhando, a coordenao sempre soube do perigo. Ns j comentvamos nas redes sociais para se preparar fazer campanha de isolamento nas aldeias, mas nada foi feito”, disse o tcnico.
Por isso, Hiparidi tambm acredita que os casos estejam subnotificados.
“Falam de pouco mais de 30 mortes, mas todo dia tem gente morrendo sem fazer exame e a gente que est perto quem v. Eu j peguei covid e conheo os sintomas”.
Hiparidi est em isolamento na aldeia Abelhinha e, assim como Luciano Ariabo Kezo, teme os impactos culturais que o avano da covid-19 pode causar em seu povo.
"A minha preocupao de ruptura grande na transmisso dos conhecimentos tradicionais. Os velhos e conhecedores da cultura, das ervas medicinais, esto morrendo".
Imes polticos
A FEPOIMT aponta ainda dificuldade de dilogo com o poder pblico estadual e federal. A entidade articula as demandas indgenas em ambas as esferas, alm de instanciais municipais, em dilogo a Articulao dos Povos Indgenas do Brasil (APIB) e Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira (COIAB).
“O governo do estado age com morosidade diante de uma doena que no espera e chega devastando tudo. A participao ainda est muito devagar e no atende a demanda. Discusses ainda no saram do papel e se concentram mais em questes polticas, que em estratgias e aes”, afirma Valdemilson Ariabo Quezo.
“J o governo federal tenta a todo momento desconstruir a realidade. Ajudam regionais nicas e falaram que atenderam de modo geral. Na prtica, sabemos que tem um recurso que no chega na base”, acrescenta o diretor.
Indgenas no Palcio Paiagus com o governador Mauro Mendes, em 2019. Foto: Mayke Toscano/Secom-MT
A federao organiza a distribuio de cestas bsicas e EPIs, medicamentos e insumos atravs de aes prprias – poucas com participao governamental – e muitas doaes, ainda insuficientes para a demanda dos povos indgenas. “J estamos prevendo a segunda onda, estamos apenas na primeira”.
Junto s entidades nacionais, a FEPOIMT atua a partir da construo de um plano de Emergncia Indgena. Em parceria com o Instituto Centro de Vida (ICV), a federao dispe de uma plataforma para receber doaes.
"Mas a responsabilidade pela sade de indgena e no-indgenas no das instituies, mas do Estado. Cabe aos poderes desenvolverem polticas pblicas em apoio nossa populao", ressalta Valdemilson.
O que dizem os governos
A informao do Ministrio da Sade que vem sendo veiculada na imprensa do ree de R$ 795,9 milhes para Mato Grosso, destinados especificamente ao combate pandemia. A Secretaria Especial de Sade Indgena (SESAI), do Governo Federal, ainda afirma que tem enviado equipamentos de proteo individual e testes aos indgenas.
O Governo do Estado de Mato Grosso explica que esse recurso no a por sua gesto e chega diretamente aos DSEIs. Vem reafirmando ainda que a sade indgena responsabilidade do governo federal.
Com isso, o Governo do Estado afirma participar da questo apenas dando e aos municpios e alega que instituiu um ‘Grupo de Trabalho Central’ para desenvolver aes de monitoramento e estratgias para reduzir a propagao da Covid-19 nos territrios indgenas em Mato Grosso, junto a SESAI, FEPOIMT, municpios, conselhos, universidades, organizaes sociais e sociedade civil.
“O objetivo fornecer subsdios para que as Secretarias de Sade Estadual e Municipais, Distritos Sanitrios Especiais Indgenas, Ministrio da Sade e a Fundao Nacional do ndio (Funai) possam atuar de forma mais clere e especfica no enfrentamento da pandemia no interior das aldeias”.
At o momento, no entanto, no foi informada nenhuma ao por parte do grupo, criado em 30 de junho pelo Decreto 537/2020.
Com relao atuao na Alta Complexidade, o governo do Estado reafirma a ampliao no nmero de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), custeando a diria das UTIs em conjunto com o Ministrio da Sade.
Conforme a Secom, com relao a aes no mbito scioeconmico, o estado afirma que distribuiu 3.500 kits de alimentos, alm de materiais de limpeza, para famlias indgenas em 35 municpios mato-grossenses. Mais cestas bsicas devem ser entregues em uma segunda etapa da campanha Vem Ser Mais Solidrio.
De acordo com a Secretaria de Estado de Educao (Seduc), famlias dos alunos das escolas indgenas tambm estariam recebendo os kits alimentao escolar. “A Seduc entregou mais de 1.700 kits de alimentao escolar para os cerca de 12 mil alunos matriculadas nas 71 escolas de educao indgena que atendem todas as 43 etnias que vivem no Estado”.
Ainda conforme o governo estadual, as famlias indgenas que integram a "subclasse residencial de baixa renda" ficaram isentas do pagamento do ICMS de energia eltrica at o ms de junho.
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