A promulgao da Lei 14.112/2020, que reformou a Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperao e Falncia – LRF), trouxe importantes inovaes, incluindo, no 13 do art. 6, a previso de que os contratos e obrigaes oriundos de atos cooperativos no se submetem aos efeitos da recuperao judicial. Essa alterao reconheceu expressamente a especificidade das operaes realizadas entre cooperativas e seus associados.
Contudo, a aplicao prtica desse dispositivo tem gerado intensas controvrsias jurisprudenciais, sobretudo no mbito das cooperativas de crdito, cuja natureza hbrida — entre instituio financeira e sociedade cooperativa — exige anlise tcnica, jurdica e econmica mais aprofundada.
Nos termos do art. 6, 13 da LRF: “No se sujeitam aos efeitos da recuperao judicial os contratos e obrigaes decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei n 5.764, de 16 de dezembro de 1971.”
A Lei 5.764/1971, por sua vez, define em seu art. 79: “Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados [...] para a consecuo dos objetivos sociais.” “Pargrafo nico: O ato cooperativo no implica operao de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.”
Esse marco legal estabelece, portanto, que os atos cooperativos constituem figura jurdica prpria, isenta de fins lucrativos, voltada prestao mtua de servios entre os cooperados e realizao dos objetivos sociais da cooperativa. Tais atos no se confundem com operaes mercantis tpicas de instituies bancrias.
As operaes de crdito firmadas por cooperativas com seus associados no podem ser analisadas sob o mesmo prisma das transaes bancrias convencionais. Isso porque, nas cooperativas, o resultado da operao — positivo ou negativo — repercute diretamente sobre todos os cooperados, por meio da apurao e distribuio das sobras.
A emisso de uma Cdula de Crdito Bancrio (CCB), por exemplo, embora formalmente semelhante quela utilizada por bancos, quando praticada entre cooperativa e cooperado, insere-se num contexto de interdependncia econmica e mutualismo, em que a inadimplncia de um cooperado gera efeitos sistmicos no conjunto da cooperativa, o giro de recursos ocorre no mbito regional/local e o resultado impacta a solidez de uma comunidade produtiva e econmica, e no um conjunto de acionistas dispersos.
Ao contrrio dos bancos, que diluem seus riscos entre diferentes setores (agronegcio, indstria, comrcio, mercado financeiro), a cooperativa de crdito um ente regional, cuja concentrao de risco est profundamente enraizada em sua base de cooperados e no territrio de atuao. A submisso indevida de seus crditos recuperao judicial — com seus efeitos de moratria contratual, novao forada e, sobretudo, o desgio dos valores devidos — impe grave assimetria jurdica e ameaa estabilidade econmica local.
essencial destacar que a recuperao judicial, alm da suspenso das execues (art. 6 da LRF), implica a moratria dos contratos em curso, a possibilidade de novao das obrigaes (art. 59, LRF), e, sobretudo, a imposio de desgio nos crditos, frequentemente em percentuais elevados, o que resulta em substancial perda patrimonial para os credores.
Quando esses efeitos atingem cooperativas de crdito, o dano no se restringe ao ente credor, mas se propaga sobre toda a comunidade de cooperados, reduzindo a capacidade de concesso de novos crditos e de fomentar a atividade econmica da regio.
Este cenrio refora a diferena fundamental entre cooperativas e bancos. O banco, diante de prejuzo em determinado setor (ex: agronegcio), pode compens-lo com ganhos em outros (ex: indstria, mercado financeiro). J a cooperativa regional, afetada por uma sucesso de recuperaes judiciais envolvendo seus prprios cooperados, colapsa internamente — e arrasta consigo a economia local.
Diante da complexidade da matria e da ausncia de uniformidade nos tribunais imperativa a participao institucional das federaes representativas como amicus curiae.
Essas entidades legalmente reconhecidas e representantes mxima do cooperativismo no pas, possui expertise tcnica, estatutria e regulatria para esclarecer ao Judicirio os impactos sistmicos e jurdicos do tema, subsidiando decises com dados econmicos e fundamentos doutrinrios especficos do setor.
Outrossim, nos termos do art. 52, V da LRF, e tambm do art. 127 da Constituio Federal, o Ministrio Pblico atua como fiscal da ordem jurdica e da ordem econmica.
Com efeito, torna-se essencial que o parquet, ao intervir nos processos de recuperao judicial, atente-se para a funo social e econmica das cooperativas de crdito, especialmente nos pequenos e mdios municpios. Sua fragilizao no apenas compromete a solvncia da entidade, mas compromete tambm o crdito agrcola, a cadeia de suprimentos e a renda familiar em amplas regies.
A judicializao em massa de crditos cooperativos pode levar ao estrangulamento do sistema cooperativista, que historicamente tem atuado como ncora de desenvolvimento em reas negligenciadas pelo sistema bancrio tradicional.
A correta interpretao do art. 6, 13 da LRF demanda uma abordagem jurdica sistmica e sensvel estrutura diferenciada das cooperativas de crdito. O tratamento uniforme dado s instituies bancrias e s cooperativas de crdito no contexto da recuperao judicial compromete no apenas a segurana jurdica, mas a sustentabilidade econmica regional.
fundamental que o Poder Judicirio, em especial nos tribunais de 2 grau e nos tribunais superiores, assegure a participao das Federaes como amicus curiae, para que os atos cooperativos — em sua forma, funo e impacto — sejam reconhecidos em sua integralidade.
A proteo da economia cooperativa , antes de tudo, proteo economia brasileira.