Em maro de 2021, Mato Grosso vivenciou o pior ms para a sade pblica na histria recente do estado. Mais de 200 pessoas chegaram a aguardar na fila de espera por um leito na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), na busca desesperada para no ser mais um dos casos fatais da covid-19. E quem auxiliou no trabalho foi a Defensoria Pblica, que, em meio a outras demandas, atuou na rea da Sade na tentativa de garantir esse direito populao, com mais de 220 aes propostas em razo da covid-19.
O coordenador do Grupo de Atuao Estratgica em Defesa da Sade (Gaedic Sade), o defensor pblico Fbio Barbosa, que atua em Lucas do Rio Verde (330 km de Cuiab), em conversa com o Leigora, avaliou a importncia da empatia nesse processo. Ele tambm falou sobre o trabalho da Defensoria em geral, e as dificuldades nas quais os defensores esbarram.
Barbosa tambm falou sobre a polmica em torno da alegao de que as decises liminares fariam com que alguns pacientes assem na frente uns dos outros. Opinou, ainda, sobre o fim da Vara Especializada da Sade, que funcionava em Vrzea Grande.
Confira a entrevista:
Leiagora - Como funciona o trabalho do ncleo de sade na Defensoria Pblica?
Fbio Barbosa - Normalmente, a pessoa que chega na Defensoria Pblica com uma situao de sade porque ela j teve esse direito negado, vamos assim dizer. Em um primeiro momento, ns tentamos resolver istrativamente essa questo, porque judicializar nunca a melhor forma de resolver as coisas. Judicializar demonstra que voc tem um conflito entre as partes, que no conseguiram conversar e resolver essa questo. E ns tentamos fazer isso primeiro. Vamos ver porqu, se est faltando medicamento, se o tratamento pode ser substitudo por outro… Depois, se vem uma negativa do estado ou municpio de que no vai dar encaminhamento, juntamos todas as documentaes, laudos mdicos, pronturios, e ento judicializamos a questo.
claro que em uma situao de extrema urgncia, e s vezes o prprio hospital faz o contato com a Defensoria Pblica (isso acontece muito no interior), no d tempo para tomarmos providncias istrativas. Voc realmente judicializa a questo, porque tempo vida.
Leiagora - E quais so os tipos de pedidos que costumam chegar?
Fbio Barbosa - So vrios. Tem pessoas precisando de angioplastia, ou com problemas pulmonares. Tem pessoas com problemas neurolgicos, ou precisando de rteses, prteses. Tem quem precise de medicamentos, tanto os que so fornecidos pelo sistema SUS quanto aqueles que esto fora do sistema. Tem pessoas que vm necessitando de encaminhamentos para exames. Pedidos de internao compulsria para pessoas envolvendo lcool, drogas…
Esse um calcanhar de Aquiles da Defensoria, que est ando por uma discusso sobre a viabilidade desses pedidos. Me parece que hoje o caminho que estamos propondo a no judicializao dessa demanda e buscar fortalecimento de apoio das redes que envolvem todo esse tratamento de psicosocial.
A nossa ideia, hoje, fortalecer essas redes, para que no precise judicializar essa demanda, e uma que temos bastante. Muita gente, muita famlia desesperada… Ento, da mais ampla espcie o nosso atendimento.
Leiagora - Nos casos em que so propostas aes judiciais, como funcionam o ps? Os prazos costumam ser de urgncia ou demoram para as liminares serem efetivadas?
Fbio Barbosa - Vai conforme cada caso. Podem deferir uma liminar ou no, ou podem solicitar mais documentos. Normalmente, a gente consegue ir bem at a liminar. O calcanhar de Aquiles a partir da, no efetivar aquele direito que a gente comea a ter mais dificuldade. O juiz concede uma liminar, defere um prazo e um grupo de mdicos vai analisar aquele caso. Eles fazem uma anlise geral, com base nos documentos mdicos que esto instruindo o processo, mas no fazem uma consulta para dar o parecer. At porque o juiz no um expert da rea da Medicina, mas ele est definindo uma liminar ou no, por isso esse rgo vai apoi-lo. s vezes no bate a informao do processo mdico com o que o grupo diz, mas como eu falei, eles fazem uma anlise geral do caso.
Deferindo a liminar, como acaba sendo a regra, comea-se a briga de efetivar aquele direito. Porque a entra toda aquela questo de falta de vagas, falta de compra de determinados servios…
Leiagora - Que tipo de servios so esses em que vocs encontram dificuldade?
Fbio Barbosa - A gente tem uma dificuldade muito grande em Mato Grosso com certas especialidades e com a questo de procedimentos que envolvam colocao de prteses e rteses. Toda essa questo precisa ser repensada. Precisamos repensar a sade pblica, e claro que em modo geral, no s em Mato Grosso. Mas temos essas peculiaridades. Aqui a gente tem poucas faculdades de Medicina, e normalmente essas faculdades no trabalham com a residncia, que a especializao. Ento esses formandos saem do estado e no retornam, por isso temos essa dificuldade de servio de especializao, principalmente no interior.
Por isso acaba tendo que reportar sempre a Cuiab e acaba que o gargalo fica muito pequeno e um nmero muito grande de pessoas. Por isso vemos a formao de filas, com nmero muito grande de pessoas, para realizar procedimentos que, muitas vezes, nem so to complexos, mas acabam gerando essa dificuldade.
Leiagora - A respeito do que o senhor mencionou antes, a dificuldade com as liminares, como vocs procedem?
Fbio Barbosa - De um modo geral, a Justia defere os pedidos. inegvel que o Estado tenha a obrigao, o dever constitucional de prestar assistncia na rea da Sade. Est expresso na Constituio Federal, est expresso em leis ordinrias… Ento, quando o Estado no presta esse servio, mesmo a gente tendo uma liminar, o prximo o pedir bloqueio das contas pblicas. A Defensoria vai solicitar ao juiz, uma vez que o Estado est em mora, em descumprimento agora a uma ordem judicial. A Defensoria pede o bloqueio do valor orado. Normalmente, junta-se trs oramentos quando possvel, s vezes so apenas dois, na medida do possvel, e o juiz, com base no menor oramento, vai deferir e bloquear esse valor do Estado, para depois depositar essa instituio e fazer o procedimento que se precisa.
Leiagora - E em relao pandemia da covid-19. Houve aumento na demanda de judicializao da sade? Muita gente clamando ajuda por um leito de UTI?
Fbio Barbosa - Primeiro eu preciso explicar que, estatisticamente, em 2020 a gente tem um delay de informaes. Eu assumi a coordenao do Gardic em junho, e foi a partir da que criamos um questionrio, porque, para mim, estatstica muito importante, porque essas informaes podem fomentar polticas pblicas. Ento, propusemos um relatrio para o defensor geral e os defensores, a partir do dia trs de agosto, aram a preencher um formulrio. No entanto, o maior nmero de aes judicializadas foi antes desse nosso levantamento. diferente para 2021, que a eu posso te falar que tivemos, at o momento, 97 aes relacionadas covid-19, sendo, 92 para leitos de UTI e 5 de aes diversas. E, desses, 72 casos foram apenas de 12 a 31 de maro. Outras 17 aes de UTI covid foram de 1 a 8 de abril.
Leiagora - Apesar desse apago de dados, vocs sabem quando foi que houve o maior fluxo de processos da Defensoria em relao pandemia?
Fbio Barbosa - Ns tivemos o pico das aes judiciais entre junho e julho. Inclusive, a prpria imprensa comeou a cobrar a Defensoria esses dados, mas como no tnhamos.... Em um primeiro momento, ns comeamos a contabilizar por Whatsapp. O defensor avisava 'olha, entrei com uma ao', e amos preenchendo. Ns tivemos um grande nmero de aes judicializadas, foram 123 pedidos relacionados covid-19 no ano todo, mas nesse perodo anterior, antes de comearmos a preencher esse relatrio, tivemos praticamente todas essas aes protocolizadas. Foram 111. Isso coincide com a proporo da populao infectada e tambm com a queda de leitos que tivemos.
Leiagora - E a partir do momento em que “acalmou a pandemia”, as aes diminuram?
Fbio Barbosa - Isso. A partir de agosto comearam a cair os nmeros, e de agosto a dezembro foram apenas 12 casos. Ns tnhamos, tambm, at aquele momento, 9 casos suspeitos, que precisamos judicializar mas no tnhamos informaes confirmadas sobre a covid-19. Isso demonstra que realmente teve uma queda no cenrio da covid-19 no segundo semestre e as pessoas j no precisavam mais procurar a Defensoria para esse tocante.
Leiagora - Como foi, nesse momento de pandemia, receber pedidos de ajuda por uma vaga que, s vezes, no existia?
Fbio Barbosa - o que eu sempre falo quando eu estou fazendo algum processo seletivo, para contratar estagirio, por exemplo, a minha equipe tem que ter uma empatia muito grande, uma coisa pessoal minha, desde antes de atuar nessa rea. , por um lado, ruim, porque voc puxa isso para voc e voc volta pesado dessa atribuio, voc sente muito a dor do outro. Por outro lado, tambm quando voc sente a dor do outro, voc puxa fora, energia de algum lugar, e luta at o fim para tentar fazer valer aquele direito. Ento, isso uma das coisas que eu cobro muito nos meus processos seletivos, porque atuar nessa rea no qualquer rea. As pessoas tm que ter uma empatia. diferente do servio burocrtico. Muitas vezes as pessoas chegam para falar com a gente esbaforidas, ou xingando ou falando alto, em uma situao de desespero, e voc tem que ter sensibilidade daquilo. Voc tem que entender um pouco a dor do outro e se valer disso, transformar isso em energia para lugar pelo direito daquela pessoa at o fim. Quando voc traz o resultado esperado, minha filha, uma felicidade muito grande. E um contraponto. Voc recebe mensagem da famlia e no tem preo. Por outro lado, infelizmente, muitas vezes o resultado no o esperado e, na rea da sade, quando voc est brigando por leito de UTI, a gente j sabe que o resultado vai ser o pior possvel.
Leiagora - Retornando questo da UTI, h quem afirme que as decises liminares seriam como ar algum na frente de outro paciente. O senhor concorda?
Fbio Barbosa - Essa questo to complicada que ficaramos dois dias aqui conversando sobre isso. Posso te mostar pelo menos umas 15 dissertaes de mestrados, teses de doutoramento comprovando que isso um mero discurso. Na verdade, e a a gente precisaria discutir toda essa questo da fila, de pactuao municipal… Mas, a grosso modo.. Essa questo de fila… Todas essas pessoas tiveram o direito negado pelo Estado. E o que essas pessoas fizeram, que procuraram a Defensoria Pblica com essas demandas, talvez tenham tido uma contrapartida um pouco mais ativa de buscar seu direito atravs de um outro mecanismo. Voc tem todo o direito de ficar aguardando na fila e tambm tem o direito de buscar outros mecanismos legais para resolver o problema. A judicializao uma forma disso.
Agora, eu no acredito que chega a furar a fila, porque, ainda assim, as Centrais de Regulao analisam tudo. A fila muito subjetiva. No necessariamente aquele que o primeiro vai pegar a prxima vaga. Pode ser que o terceiro, o quinto ou stimo tenha um problema mais grave e urgente. Ento, essa pessoa ser ada na frente e a prpria regulao vai furar a fila. A questo analisar esses casos de cada um. Quando o Estado intimado a cumprir a liminar, ele precisa analisar a gravidade do caso. Por isso, a questo de furar a fila mais um discurso do que a prtica.
Leiagora - Para finalizar, doutor, ns estamos em uma discusso, com deciso recente do Superior Tribunal de Justia, em relao vara especializada da Sade em Vrzea Grande. De que forma o fim da especialidade impacta na atuao de vocs?
Fbio Barbosa - . O governador fala que deve ser mais custoso ao Estado porque, com a criao da vara da Sade, de um certo modo, alguns procedimentos realmente aram a ficar mais baratos. Porque, como concentra tudo ali, a oferta e demanda. Se voc comprar 20 angioplastia em determinado lugar, claro que o procedimento vai ser mais barato do que para o juiz do interior onde tem menos oferta. A o juiz vai se valer dos oramentos e acabar respeitando o preo de mercado. Por isso, consegue-se diminuir esse valor. Mas eu no sou a favor da vara, se isso que voc deve estar se perguntando. Por uma srie de favores, e principalmente fatores legais que comearam a ser debatidos e j reconhecidos pelo Superior Tribunal de Justia. Realmente, h uma ilegalidade na resoluo que criou essa vara e eu entendo que os processos devem retornar para o interior, o que j vem acontecendo.
Ns temos uma proposta alternativa para essa questo, de manter a especialidade em determinando local, e respeitar a legalidade para que esses processos retornem s respectivas comarcas, ou seja, voc consegue manter a legalidade, a eficincia no gasto pblico e o principal, que melhorar o tempo entre a procura e a efetividade desse direito, porque o que ns temos visto hoje, com essa concentrao de processos em Vrzea Grande e com essa dificuldade toda que estamos acompanhando de leitos, medicamentos e consultas, isso culmina numa demora muito grande em relao ao que era antes, quando os processos corriam no interior e os defensores poderiam estar brigando por isso com uma facilidade maior.
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