02/08/2020 s 09:04 6p2251
Camilla Zeni
Mato Grosso classificado como o pior estado quando se fala em transparncia do cenrio da covid-19. O levantamento da organizao Open Knowledge Brasil, que avalia a qualidade dos dados e informaes relativas pandemia em portais oficiais no pas.
A divulgao de dados abertos sobre o novo coronavrus tem impacto direto no trabalho de cientistas, que dia aps dia - e, alguns, de forma voluntria -, coletam as informaes para interpret-las e, com isso, apresentar projees e cenrios que podem servir de base para orientao das aes do poder pblico.
Em Mato Grosso, porm, o Estado no apenas falha na divulgao das informaes, segundo a organizao, como tambm desacredita no trabalho dos cientistas locais. A exemplo, durante coletiva de imprensa no dia 20 de julho, o governador Mauro Mendes (DEM) afirmou que no h base cientfica nas projees de um grupo de estudos da covid-19 formado por mestres e doutores da Universidade Federal de Mato Grosso.
No entanto, em entrevista ao Leiagora, a professora doutora Ana Paula Muraro, especialista em Epidemiologia do Instituto de Sade Coletiva, apontou que as projees so feitas inteiramente com dados do governo do Estado. Ela tambm comentou sobre as constantes alteraes feitas nos boletins informativos que so divulgados diariamente, e o fato do governo no ter respondido a um ofcio da Reitoria da UFMT, que pedia o aos microdados da pandemia para disponibilizar aos pesquisadores para auxiliar o Estado nas projees.
Confira abaixo a entrevista com a pesquisadora:
Leiagora - Desde o incio da pandemia, a principal preocupao era com relao ao nmero de leitos de UTIs disponveis. Depois, quando houve a construo dos primeiros 40 leitos extras no Metropolitano, a impresso que o governo ou era de que estava tudo resolvido. A situao atual j confortvel?
Dra. Ana Paula - L no incio algum do COE [Centro de Operaes de Emergncias em Sade Pblica] falou que teramos apenas quatro mil casos de covid aqui em Mato Grosso. Aconteceu que a doena muito nova e s comeamos a conhec-la mesmo depois que se configurou como uma pandemia. As caractersticas da doena e a progresso de alguns casos preocuparam, mas foi l por fevereiro que conseguimos conhecer melhor a doena. Aconteceu mesmo algumas confuses quanto a demanda real que seria causada pela doena aqui no Estado.
O que acontece que, independentemente da demanda, ns j tnhamos uma realidade de concentrao das UTIs e dos profissionais para essas unidades na regio metropolitana. Muitos estados tm dificuldade de interiorizao. No sabamos a velocidade com que a covid iria se propagar e nem quantos por cento das pessoas contaminadas precisariam de UTI. Tnhamos uma leitura vasta internacional mas no sabamos como iria se comportar no Brasil, porque uma das caractersticas da doena atingir quem tem comorbidades, obesidade, hipertenso, diabetes e essas doenas no so igualmente distribudas no pas. Ento a preocupao foi muita porque no sabamos como a doena iria se comportar aqui em Mato Grosso e quantos leitos seriam necessrios.
Mas, talvez, algumas dessas interpretaes aconteceram, como os 40 leitos na regio de Cuiab, por desconhecer o real potencial da doena. Tenho que relativizar isso e no posso falar que foi uma inteno ruim do estado. s vezes foi por desconhecimento mesmo. A gente viu que aqueles 4 mil casos no tinha nem base. Isso, sim, no tinha base cientfica. Quero acreditar que foi por desconhecimento.
Leiagora - Qual a avaliao em relao deciso inicial de no construir hospital de campanha. Foi ideal?
Dra. Ana Paula - Mato Grosso e o Centro-Oeste, com exceo de Braslia, teve um ritmo mais lento no incio da covid por no ser centro. Braslia teve mais casos por conta do aeroporto, das viagens. Os primeiros casos em Cuiab foram de pessoas que viajaram nacionalmente. Outra situao que comeamos as medidas de isolamento precocemente e isso foi acertado. Muita gente fala que foi precoce, mas, com a deficincia que tnhamos no sistema de Sade, precisvamos de tempo para melhorar. Ento tivemos 3, 4 semanas com as medidas de distanciamento e o sistema teve tempo de se preparar. Estava uma corrida por medicamento, equipamento, tudo bem, mas era possvel organizar o sistema. Se era por meio de hospital de campanha ou leitos nos hospitais existentes, isso realmente uma deciso muito complexa para se tomar e a gesto tem maior conhecimento disso.
No interior do estado, eu, particularmente, acho que foi acertada a ampliao dos hospitais porque facilita alguns setores que j esto instalados. Ampliar leitos em uma estrutura j pronta ganha tempo e economia em investimento. Agora, se era necessrio um hospital de campanha na regio metropolitana alm do que j foi ampliado nos hospitais existentes, a gesto que sabe tambm. Ns tnhamos condies de ampliar em alguns hospitais, como foi feito no Metropolitano.
E eu entendo que algumas barreiras foram postas, at nacionalmente, mas essa ampliao poderia ter sido efetivada nessas semanas que tivemos de flego. E isso tinha que ter sido feito no estado inteiro. No podemos s olhar para a regio metropolitana. Eu parabenizo os prefeitos que tomaram a deciso acertada de ampliar a rede no incio. Agora, se o governo acertou ou no no ritmo de ampliao de leito, a podemos ver dados referente s filas de espera que tivemos. Pessoas ando dois, trs dias esperando leito de UTI. Uma Central de Regulao que talvez no estivesse preparada para esse fluxo e acompanhamos dias de apreenso dos leitos quase todos ocupados.
Leiagora - Hoje, a nica fonte de dados sobre a covid-19 oficial, que, em tese, compila todas as informaes do Estado, o portal da SES? Iniciativas como o Brasil.Io no podem ser considerados para fins cientficos?
Dra. Ana Paula - Eles so considerados e a gente at usou no incio, mas por algumas diferenas que a gente via, por conta dos horrios de atualizao, deixamos de usar. Para avaliar as projees ns precisamos dos casos e bitos por dia. O Brasil.io, a fonte dele, se voc olhar, justamente os boletins epidemiolgicos do Estado, ento eles s adiantam um trabalho que extrair esses dados.
No incio, quando era em PDF, o Brasil.io conseguia. Quando ficou em imagem, eles j tiveram que fazer outro formato para extrair esses dados tambm, porque agora, quando voc a o boletim, as tabelas de dados por municpio esto em imagem. Vrios governos disponibilizam esses dados de uma melhor forma, inclusive em planilha do excel. Ento hoje ns fazemos esse trabalho manualmente e ainda no temos outra base de dados melhor.
Leiagora - Como a senhora pontuou, o governo mudou a forma de divulgao e os sistemas, o que fez com que algumas informaes deixassem de ser divulgadas temporariamente. Esse tipo de mudana traz qual impacto no acompanhamento de vocs?
Dra. Ana Paula - Tem muito impacto por conta disso, porque a gente perde um pouco do real histrico. Outra coisa que a gente perde desde o incio porque temos os dados a partir de que eles entraram no sistema. Ento mesmo antes de mudar o sistema podem ter havido dias em que os municpios tinham casos que no deram dentro de entrar no sistema, mas j foram confirmados.
Esse histrico causa um impacto nas projees porque, pra gente avaliar a projeo, a gente analisa o histrico de casos por dia que surgiram num determinado perodo, e a mesma coisa para bito. Ento s vezes a gente teve 200 casos registrados em um dia, mas, na realidade, eles esto distribudos nos ltimos trs ou quatro dias. Ento isso muda tambm a avaliao conforme a metodologia.
O ideal seria que, alm do boletim, a secretaria de sade divulgasse uma planilha simples de casos por dia de notificao. A gente chama de microdados. Outros estados fazem isso, como Pernambuco. Os tcnicos das secretarias de Sade municipais fazem um trabalho muito bom, mas precisam pensar tambm na disponibilizao desses dados.
Leiagora - Mato Grosso foi avaliado como o pior estado no indicativo de transparncia de dados da covid. Existem informaes das quais vocs sentem falta de estar disponvel?
Dra. Ana Paula - Com certeza. Eu no sei se o governo no disponibiliza porque no est no rol de informaes que eles acham pertinentes ou se no tem essas informaes disponveis, mas tem muitas. Por exemplo, subgrupos populacionais, isso muito importante porque temos uma populao indgena grande no Estado. Seria interessante se eles divulgassem os dados dos indgenas, e tambm por cor da pele. Outros boletins mostram por profissionais de sade tambm. O nmero total de testes aplicados tambm importante, mas o nosso boletim no tem e so informaes essenciais para entendermos as caractersticas.
Quais so os grupos populacionais que temos que tomar cuidado? Quais so os grupos em maior risco? Algumas informaes como profisso, escolaridade, sintomas percebidos, faixa etria seriam excelentes para fazermos outras anlises. Se isso fosse aplicado aqui ns estaramos no topo do ranking de transparncia. uma vergonha estarmos em ltimo. Eu no posso avaliar qual a razo desse problema, mas caso a caso foi includo no sistema do SUS.
Leiagora - Existe troca de informaes entre o grupo de pesquisa e o governo? Por exemplo, vocs conseguem ter o a informaes que no saem no boletim?
Dra. Ana Paula - No. Desde maio a UFMT, por meio da Reitoria, solicitou ao governador informaes em microdados para poder avaliar melhor a situao do estado e poder contribuir com a gesto, colocou inclusive a gente disposio para colaborar, mas desde o incio esse processo no teve resposta. Recebemos apenas um e-mail da ouvidoria dizendo que foi recebido. Ns temos exemplos de outros estados que tem uma parceria das universidades com a Secretaria Estadual de Sade e isso funciona muito bem. Ento a gente quis sempre nos colocar disposio, por mais que temos limitaes em relao ao que a gente recebe. Se essas informaes no estiverem bem a gente no pode fazer muita coisa, mas da forma como est, estamos muito mais limitado do que se estivessemos, um pouco melhor, essas informaes discriminadas.
Leiagora - Vocs acreditam que o governo no d crdito para a cincia produzida no prprio estado, a exemplo da declarao do governador Mauro Mendes, de que Me Dinah (que j falecida) faria projees melhores?
Dra. Ana Paula - A impresso que fica realmente essa falta de crdito mesmo, na cincia que feita aqui no Estado. A UFMT conhecida nacional e internacionalmente por vrias pesquisas na rea da Sade, pesquisas importantes, inclusive de doenas infecciosas. O Hospital Jlio Muller tem profissionais de referncia nessa rea, ento a gente fica triste com essa falta de crdito por meio da gesto, mas a gente sabe que no pode generalizar em todos os nveis da gesto. Temos tcnicos da secretaria de sade estadual formados no mestrado do Instituto de Sade Coletiva da UFMT, tcnicos muito bem capacitados, doutores, especialistas que fazem um belo trabalho. Mas ns sentimos isso por parte do chefe da gesto, sim, tanto que no ter uma resposta, desde maio, a um processo formalizado pelo reitor sinal, sim, de uma falta de crdito da Universidade Federal, que inclusive o bero de formao do governador.
Leiagora - Em relao aos dados coletados, Mato Grosso j chegou na estabilidade da covid, como algumas projees colocam? Quanto tempo o plat deve durar no Estado, at os casos carem?
Dra. Ana Paula - Em Mato Grosso, em geral, dados do estado mostram que temos alguns casos estabilizados em nmeros registrados, mas no h certeza se so dados de hoje ou de dois ou trs quatro dias e que foram registrados hoje. Mas partindo disso, a gente no tem uma evoluo homognea dessa epidemia, ele tem vrios ritmos de progresso nas suas 16 regies de sade. Ento, no estado como um todo, realmente os dados realmente parecem estar iniciando [uma estabilidade], iniciando porque ainda h uma progresso, ainda que tenha essa estabilidade em algumas regies.
Eu tenho medo em falar de estabilidade porque isso no vimos ainda. Podemos falar que est comeando a diminuir os casos novos, sendo que tem regies que ainda esto em alerta pelo aumento de casos.
Leiagora - Considerando que temos cenrios diferentes em Mato Grosso, ento no possvel afirmar que j vivemos o pico de infeces da pandemia?
Dra. Ana Paula - O atualizado mostra que ainda no chegamos no pico. O pico quando h queda no nmero de casos, e continuamos aumentando o nmero de casos.
Leigora - Temos notcias muito positivas em relao a testagem das vacinas contra o vrus. Em quanto tempo vocs acreditam que os medicamentos podem estar disponveis para a populao?
Dra. Ana Paula - O avano das vrias vacinas que esto em andamento eu acompanho, mas elas tm questo de produo, reproduo e disponibilizao de vacina que seguem muitos critrios, e tm muitos desafios a ainda. No Brasil temos um programa nacional de imunizao, que uma carta na manga para disponibilizar para a populao quando estiver disponvel. Com a vacina podemos pensar num avano de enfrentamento da doena importante, mas tudo vai depender da sua efetividade, da durabilidade da imunizao…
So muitos critrios a serem avaliados, mas, claro, se tivermos essa vacina, muitas outras possibilidades sero abertas para o enfrentamento dessa doena. Mas uma coisa que eu no posso afirmar que esse ano teremos a vacina, por conta da capacidade de produo e a aprovao final de sua efetividade. So vrias etapas na vacina. Quero muito acreditar que teremos esse ano ainda, quero confiar, mas no posso falar, porque seria um tiro no escuro.
Leiagora - Do seu ponto de vista, como deve ser o que se chama de 'novo normal' no ps-pandemia? Acredita que as pessoas devem se preocupar um pouco mais com a sade ou a mudana ser mais no modo de trabalho da sociedade?
Dra. Ana Paula - Cada vez mais a gente v o novo normal pensando no modo de produo e vida. Inclusive essa doena surgiu pelo modo como produzimos alimento e nos alimentamos. a pela parte mais ampla do modo de vida e o cuidar da sade tambm est includo, claro.
Acredito que, visto essa doena, claramente mais severa em pessoas com comorbidades e com mais idade, pode ser que as pessoas se preocupem para um envelhecimento mais saudvel possvel e na preveno das doenas e proteo da vida, por meio de uma alimentao saudvel, prtica de atividades fsicas, cuidado com o corpo e com a mente. Mas no tenho certeza se isso vai se efetivar, porque j amos por outras pandemias e outras doenas que tiveram essas caractersticas de afetar grupos especficos e parece que no teve esse efeito. Talvez agora, com esse nvel de informao que ns temos com a populao, pode ser que a gente se surpreenda e tenha uma populao mais preocupada em prevenir doenas e no s trat-las.
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