A declarao do procurador-geral de Justia de Mato Grosso, Deosdete Cruz Junior, de que as conversas entre advogados e clientes faccionados que esto presos devem ser gravadas gerou ampla polmica e dominou os debates da ltima semana. A sugesto provocou uma reao nacional, com entidades entrando em confronto. De um lado, o Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos Ministrios Pblicos dos Estados e da Unio (CNPG) se posicionou em defesa de Deosdete, enquanto, do outro, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se manifestou em prol das prerrogativas da advocacia, levantando preocupaes sobre a violao de direitos fundamentais.
Em entrevista ao Leiagora, o advogado Matheus Guedes Czar, especialista em Direito Pblico, Direito Penal e Processo Penal, explicou os motivos que geram preocupao na classe advocatcia em relao declarao do procurador-geral de Justia. A proposta, caso entre um dia em vigor, pode quebrar a confiana entre os juristas e seus clientes.
Confira a entrevista completa:
Leiagora - O que a Constituio e o Cdigo de Processo Penal dizem sobre a relao entre advogado e cliente?
Matheus Guedes -A previso constitucional que trata desse sigilo profissional est contida no artigo 5 inciso 55 da Constituio Federal, mas o principal dispositivo legal que rege esse sigilo entre advogado e cliente est na Lei 8.906, que instituiu o Estatuto da Advocacia. Nela, no artigo 7 inciso 3, assegurado o direito do advogado comunicar com seus clientes, pessoal e reservadamente mesmo sem procurao quando eles estiverem presos. E esse dispositivo encontra respaldo no artigo 133 da Constituio Federal, que estabelece a inviolabilidade do advogado por seus atos no exerccio da sua profisso. Ento, esses so os dispositivos constitucionais e legais que asseguram essa inviolabilidade da comunicao entre o advogado e o cliente.
Leiagora - Como a proposta de gravao interfere nas garantias e prerrogativas da defesa, especialmente no que se refere ao direito comunicao confidencial?
Matheus Guedes - Primeiro, importante considerar que as garantias dessa confidencialidade entre advogado e cliente uma prerrogativa no s dos advogados, mas de todos os cidados, porque, quando investigados e quando acusados de um processo penal, eles devero estar representados por advogados, e esse sigilo necessrio para o exerccio da plena defesa do cidado, que tambm uma garantia constitucional da ampla defesa e do contraditrio, para que ele seja processado e, se for o caso, sentenciado ou condenado. Alm desse fato, essa confidencialidade importante para a manuteno da confiana do advogado e seu cliente, para que essa defesa no seja fragilizada perante a acusao que imputada a esse cliente.
Leiagora - A proposta do procurador-geral alega que advogados poderiam ser usados como instrumentos para facilitar crimes dentro dos presdios. O senhor acredita que essa justificativa tem fundamento ou uma generalizao?
Matheus Guedes -Eu acredito que representa uma parcela pequena dos profissionais da advocacia, assim como ns tambm vemos em todas as instituies, tanto estatais quanto profissionais, que existem maus e bons profissionais. Ento, como eu citei, em relao a esses profissionais que tm uma conduta controversa, que tem envolvimento, na prtica, em supostos delitos, devero ser feitas investigaes, levantamento de provas e elementos para que seja de fato quebrado esse sigilo entre advogado e cliente, que seja interceptada uma comunicao legalmente. O Estado j est amparado de vrios mecanismos para poder assistir e monitorar essa comunicao, basta ele preencher os requisitos, preencher as possibilidades da quebra do sigilo telefnico. No s sigilo telefnico, telemtico e sigilo de carta.
Leiagora - O senhor acredita que a gravao das conversas poderia ser usada de maneira abusiva, ou at mesmo seletiva, contra advogados que atuam em defesa de faccionados?
Matheus Guedes - Eu entendo que essa proposta do procurador-chefe do Ministrio Pblico est vestida de generalidade, porque, quais seriam os critrios? Primeiro, ser que o faccionado deveria ter uma condenao transitada em julgado para poder ser considerado um faccionado? Seria durante as investigaes? Ento, minimamente, deveriam existir critrios para poder estabelecer quem de fato um faccionado, quem de fato a pessoa que faz parte de uma organizao criminosa. Ento, parte da essa necessidade de parmetros, que no pode ser discricionrio das autoridades estabelecer quem o delegado de polcia, identificar uma pessoa como faccionada e simplesmente interceptar as ligaes. Existe a necessidade do preenchimento de uma srie de requisitos e o estabelecimento desses requisitos que vo (sic) garantir a legalidade desses atos. Essa quebra do sigilo da forma que proposta pelo procurador-chefe do Ministrio Pblico precisa de uma discusso muito detalhada para saber se de fato uma necessidade para o bem da sociedade. Quais so os parmetros e quais os critrios para que seja feito essa relativizao dessa garantia do sigilo da comunicao entre advogados e clientes?
Leiagora - O advogado criminalista vtima de preconceitos at mesmo de operadores do Direito. Muitos so vistos como “pombos-correios do crime”. Como acabar com esse estigma?
Matheus Guedes -Na realidade, sempre que ns falamos e observamos crimes, delicado tratar, porque sempre uma vtima. Ento, quando ns falamos de um processo penal, quando ns falamos de um delito, por vezes a vtima ser um particular, em outras ocasies, a vtima vai ser toda a sociedade. Ento, existe sempre um estigma social de que determinada pessoa que pratica delito ela agride toda a sociedade. Ento, o advogado, quando representa um acusado, ele acaba representando para a sociedade que ele est ali defendendo um crime, mas, na realidade, ele no faz um juzo de valor do crime, no faz um juzo de valor da pessoa. O advogado est ali apenas para que a pessoa esteja orientada juridicamente para justamente coibir qualquer tipo de prtica de abuso do Poder Pblico, que por vezes ocorre, no por uma inteno dolosa, mas, por vezes, em razo da quantidade de processos, do volume de processos que o Poder Judicirio tem, que as delegacias de polcia tm de seus inquritos, que acabam fazendo a tramitao dessas investigaes, dessas aes penais de forma robtica. O advogado serve justamente como um ltimo revisor, como um ltimo analista desse fato e da legalidade desses fatos que esto sendo imputados. Ento, a forma do advogado contornar esse estigma fazendo um trabalho tcnico eficiente de legalidade dos atos praticados, sem se valer das suas prerrogativas para cometimentos de atos infracionais ou ilcitos. assim que eu entendo.