Metamorfose, a total transformao, que no caso do mdico William Guarnieri, de 37 anos, tem total influncia de incentivos a educao ao longo da vida. O doutor, professor pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Universidade Federal Fluminense tambm pesquisador do Instituto Butantan e um dos responsveis pelo desenvolvimento da vacina contra Covid-19, que salvou milhares de vidas.
Assumidamente gay, William enfrentou diversos percalos desde a infncia, marcada por violncia domstica, pobreza, preconceito e limitaes. Problemas que eram reparados por um olhar fraterno de v e incentivador de professores que viam naquele menino afeminado, ainda lagarta, a inteligncia e dedicao tpicas de quem sonha em ganhar asas e virar borboleta.
E, eles estavam certos. O estudante de escola pblica, teve sim seus momentos de temor, ora por falta de condies financeiras, ora pelo preconceito da sociedade em entender as singularidades da personalidade do rapaz que no ado tinha diversas dvidas, mas que hoje estampa com alegria ORGULHO, em ser quem de fato .
Mas nem tudo so flores, mesmo com uma carreira consolidada, o pesquisador foi e alvo de preconceito por sua sexualidade e forma de se vestir.
Especialista em sade da famlia e medicina nuclear, o mdico usa sua voz em um brado de resistncia para as prximas geraes, enquanto se equilibra na ponte-area que interliga sua terra natal e seu lar do corao, o Rio de Janeiro. Voa, doutor.
Confira a entrevista completa:
Leiagora - Conte sobre sua trajetria, como foi a infncia e a adolescncia?
William Guarnieri - Nasci em Vrzea Grande, em tempos de vacas magras. Minha me me teve aos 16 anos e fez um curso de auxiliar de enfermagem na poca para ter uma profisso quando eu nascesse. Vov Ceclia era costureira e ajudou na minha criao enquanto mame trabalhava. Tivemos dias bem difceis onde a grana era muito curta e limitava os sonhos da minha famlia. Faltava tudo, comida, roupas novas e brinquedos. Desde muito pequeno, criado num lar de mulheres, sofri hostilizao pelos coleguinhas de escola e vizinhos por ser muito "frgil e afeminado". Conheci meu pai aos 6 anos de idade, quando ele pegou liberdade condicional aps ter cumprido pena por um crime cometido em Santa Catarina e fugido para Mato Grosso em 1986. Bastaram 3 meses foragido em nosso Estado para que ele conhecesse minha me e a engravidasse. Muitos coleguinhas no eram permitidos a brincar comigo e s fui ter a compreenso anos mais tarde porque os seus pais diziam que no queriam seus filhos brincando com o "filho de bandido". Meu pai veio morar conosco e transformou a minha infncia e a juventude de minha me em um inferno. Sofremos violncia domstica, ameaas e por 6 anos fomos refns das agresses fsicas e psicolgicas. Eu apanhava por ser "afeminado" e por tentar defender mame. Ela apanhava por ser mulher vulnervel, dia sim e dia no, estando salva apenas quando estava de planto como enfermeira.
Leiagora - Voc enfrentou alguma dificuldade em se assumir gay para seus familiares ou teve medo de ser alvo de preconceito?
William Guarnieri -Minha primeira relao homossexual ocorreu j aos meus 19 anos, quando no morava mais na casa da minha me. Eu havia sado para estudar no Rio de Janeiro, mas mesmo assim demorou muito para o processo de autoaceitao ocorrer. Vivia dentro do armrio porque no meu lar cristo nunca seria aceito se dissesse que era gay e temia a retaliao financeira. Eu precisava me formar em Medicina para conquistar minha liberdade.
Leiagora - De onde veio o sonho de ser mdico e o que enfrentou para conquistar esse objetivo?
William Guarnieri -A medicina me salvou. Falo isso porque frente as adversidades do meu lar e toda seduo que o sentimento de revolta contra o meu pai agressor, eu poderia ter nutrido o sentimento da criminalidade e traado a rota da violncia no meu destino. Poderia ter perpetuado e replicado toda surra e dio vivido na minha casa e talvez hoje no estaria vivo para contar esta histria. A medicina me salvou porque vi nela a nica forma de sair daquela condio de pobreza que vivamos. Vi na medicina tambm a liberdade financeira que me daria autonomia para viver minha sexualidade reprimida. Sempre estudei em escola pblica e fui contemplado com bolsa integral do governo, o PROUNI, para estudar medicina no Rio de Janeiro. No tinha dinheiro para me manter na faculdade e por isso, durante os 2 anos iniciais da faculdade, morei de favor na casa de parentes de vov Ceclia, em meio a uma comunidade carente carioca. Comia no restaurante popular e tenho muito orgulho disso. O sonho de ser mdico surgiu num teatro da escola e na fala da professora Mirian que olhou para mim interpretando um mdico. Ela me olhou e disse, "vais ser mdico na vida". Acredite nos seus sonhos!
Leiagora - Quais so as suas principais realizaes profissionais?
William Guarnieri -Formei em Medicina, especializei em medicina de famlia e medicina nuclear. Fui fazer subespecializao no Mxico em terapias radionucldicas e PET-SCAN auxiliando no diagnstico e terapias na Oncologia. Fui aprovado em 2 concursos federais, um como professor de medicina da UFMT e outro como mdico nuclear da Universidade Federal Fluminense. Dedico os meus dias a docncia e a assistncia mdica, servidor pblico com muito orgulho e atuo ajudando a salvar vidas contra o cncer. Em 2020 fui convidado pelo Butantan a atuar como pesquisador da vacina que ajudou a salvar a humanidade contra a COVID-19.
Leiagora - Quanto a sua orientao sexual, forma de se vestir, isso j foi alvo de preconceito no mbito profissional?
William Guarnieri -Eu sou muito ecltico na forma de vestir e me adapto as formalidades com requinte de visagismo, bom gosto e estilo. Sou amante da moda e me apresento como a embalagem do embrulho de um presente. Eu me visto para prestigiar meus alunos, meus pacientes e meus colegas. Por isso, coloco sempre a melhor roupa. Frequentemente ouo algumas piadas de colegas de trabalho sobre as combinaes de cores e estampas, a cala ou o sapato, mas isso no me afeta mais. Nunca vulgarizei minha imagem pessoal nem a profissional e no escondo minha sexualidade atrs de uma camisa social heteronormativa.
Ainda sobre a sexualidade, j enfrentei obstculo profissional sim. Certa vez, no concurso de residncia mdica, durante a etapa de entrevista, tentaram diminuir minha nota e me desqualificar. Anos mais tarde eu descobri que a banca havia investigado minhas redes sociais e por eu ser "afeminado" demais nas fotos, tentaram barrar minha entrada no hospital conservador. Contudo, minha nota e meu currculo eram to bons que eles no foram capazes de me impedir de ser aprovado no concurso.
Leiagora - Considera Mato Grosso um estado violento para pessoas LGBTs? Sente falta de polticas pblicas no estado e no pas para a comunidade?
William Guarnieri -Segundo os dados recentes publicados pelo Observatrio de mortes violentas contra LGBTQIAPN+, Mato Grosso ocupa o segundo lugar no pas com maior ndice de mortes violentas contra essa populao. A Secretaria de Estado de Segurana Pblica (SESP) apontam que de janeiro at maio foram registrados 27 casos de violncia contra LGBT+. Isso apenas a ponta do iceberg. Muitos casos so subnotificados por medo, represlias ou falta de apoio s vtimas do crime de homofobia. Sinto falta, sim, de polticas pblicas e privadas no Estado no intuito de coibir os crimes, pois ainda prevalece a nvoa da impunidade. Muitos crimes de homofobias inconclusivos e agressores sem punio. Percebemos que o dio contra a populao LGBT traz requintes de crueldade. So inmeras facadas nos corpos vulnerveis para destituir a dignidade inclusive do sepultamento. Eu choro a cada vtima de homofobia e devemos mobilizar a sociedade para nos defender.
Leiagora - O que na sua opinio seria o primeiro o para uma sociedade menos preconceituosa e violenta contra a comunidade?
William Guarnieri -Fui convidado a participar de um especial na Globo na ltima semana, o Falas de Orgulho, exibido no ltimo dia 21/06. Ao aceitar o convite, quis dar voz de empoderamento a todas as pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ que se sentem desmotivados ou no representados, limitados s perspectivas de violncias e preconceitos que eu j vivi no ado. Quis fazer da minha histria a histria de luta e superao de muitos colegas da comunidade que pensam em ceifar suas vidas. Eu mesmo j pensei em limitar a minha vida e por vezes, aps agresses e xingamentos, as lgrimas lavavam meu rosto com a vergonha, medo e dio. Pensava em morrer e terminar ali todo sofrimento enfrentado. Todavia, eu via o amor de vov Ceclia, que mesmo sem estudo, me incentivava a persistir estudando.
Ela dizia que a educao iria me levar muito longe. Ela estava certa, conquistei lugares nunca imaginados. Hoje vivo entre duas cidades, na ponte area incessante e com muito orgulho que a minha histria reverbere aos 4 cantos do mundo. No podemos perder mais ningum para a depresso, nem mesmo para os crimes de homofobia. Meus amigos LGBT, vocs no esto a ss nessa caminhada.
Leiagora - Se o Willian de hoje pudesse visitar o Willian do ado, o que voc diria a ele?
William Guarnieri -Se eu pudesse voltar ao ado eu teria visitado o William no leito da morte, entregue a depresso e sussurado no ouvido dele e dito: voc o amor de algum, voc importante para a humanidade e no desista de si. Parece espiritual algo espiritual, ou um dejav, mas eu j vivi essa cena no ado e por isso estou aqui relatando minha histria.
Leiagora - O que espera para as prximas geraes de membros da comunidade LGBTQIAPN+?
William Guarnieri -A nossa luta continuar, no desistam! Quantos membros da comunidade nos antecederam e foram violentados, hostilizados e mortos, lavando a histria de luta e resistncia dos LGBTQIAPN+. Quantos de ns resistiram s tentativas de nos calar frente a opresso e aos crimes de homofobia? Se estou aqui hoje para somar minha voz s inmeras outras, por vezes silenciadas. No aremos desapercebidos por aqui. Vocs no conseguiram nos calar porque depois de mim, haver muitos outros lderes da comunidade que emergiro espalhando amor e alegrias aos dias gris da sociedade sem cor. Viemos para colorir o mundo. Eu vim cintilar todas as cores da bandeira do orgulho!