A violncia domstica contra a mulher uma espiral que cada vez vai ficando mais grave at culminar na morte da vtima. No ano ado em Mato Grosso, os dados revelaram um aumento de 19% nos crimes de feminicdio. Foram 47 mulheres assassinadas em situao de violncia de gnero que deixaram 92 rfos.
Aes de preveno que auxiliam na reduo dessa estatstica so extremamente necessrias, tanto pelas vtimas quanto pelos rgos da Justia e Segurana.
Quem fala sobre o assunto a titular da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher de Vrzea Grande, Mariell Antonini Dias, que tambm coordena uma operao nacional de combate a crimes de violncia contra a mulher no estado.
Confira abaixo a entrevista na ntegra:
Leiagora - A violncia domstica e familiar contra a mulher configurada com qualquer ao ou omisso baseada no gnero que lhe cause morte, leso, sofrimento fsico, sexual ou psicolgico e dano moral ou patrimonial. Diante de um quadro como esse, quais medidas devem ser tomadas pela vtima?
Mariell Antonini Dias - Eu sempre falo para as vtimas no primeiro ato de violncia sofrido no aceitar e se posicionar porque a violncia ela tende sempre a progredir.
Ento, o que ns observamos que ela um ciclo que comea com uma exploso, geralmente menor, onde aps isso o casal retoma o relacionamento, entra em uma nova fase, que ns chamamos de 'lua de mel', porque o homem se arrepende e pede perdo. Entram em uma nova fase acreditando que isso nunca mais vai acontecer e que o casal realmente vai conciliar devido a toda dificuldade de romper essa relao.
Posteriormente as tenses do dia-a-dia voltam a acontecer porque todo relacionamento e a vida real so cheios de problemas das mais variadas espcies, como por exemplo: educao dos filhos, dificuldades financeiras e essas tenses que vo aumentando no dia-a-dia.
Aps essas etapas, vem a nova fase de exploso que geralmente um ato maior. Ento, se l no ado o autor havia xingado a vtima ou ameaado, nessa outra violncia ele j agride, ele concretiza a ameaa e isso uma espiral que vai ficando mais grave at chegar no estgio da morte da vtima.
Ento a vtima de feminicdio que ns atendemos, os casos que ns atendemos, verificamos que a maioria permeada de violncia pretrita. difcil um fato que acontece j culminar no feminicidio, porque vem um histrico de violncia atrs.
Na primeira violncia sofrida se respeite! Coloque um ponto final nessa histria, porque daqui pra frente a coisa s vai ficar pior. Ento, as medidas que as vtimas devem tomar de imediato registrar um boletim de ocorrncia, solicitar uma medida protetiva para a gente poder iniciar um procedimento.
Leiagora - Quais aes os rgos de segurana tomam para proteger as vtimas?
Mariell Antonini Dias - Se a vtima tem uma leso corporal, o delegado vai instruir, ela ser orientada a fazer o exame de corpo de delito. Se tem uma porta quebrada na casa, tambm vai ser colhida uma percia. Ento, o importante fazer o B.O e registrar a medida porque a medida salva vidas realmente, no s uma folha de papel, todo mecanismo de Justia trabalhando em prol dessa mulher.
Quando a mulher solicita a medida protetiva, alm dela ter em prol dela uma srie de medidas cautelares, mas que impendem o autor de se aproximar dela, de manter contato, ela ainda tem a possibilidade de conseguir instalar o boto SOS Mulher no celular, que o que chamamos popularmente de boto do pnico, onde ela tem plenas condies de acionar o sistema da polcia, da segurana pblica com um simples clicar de dedos na tela do celular, ento muito gil e fcil dessa forma de acionar a guarnio para atend-la.
possvel tambm que a mulher tenha acompanhamento da patrulha Maria da Penha que vai fiscalizar essas medidas. Por meio judicial, ela [a patrulha] entra em contato com autor e notifica: 'olha, a partir de hoje essa mulher est protegida pelo sistema de Justia e voc no pode se aproximar, no pode manter contato'. E isso realmente inibe muito os agressores. A equipe tambm acompanha a vtima, conversam, verificam se realmente a medida protetiva est tendo efetividade.
A mulher tambm pode ser acompanhada por um atendimento psicolgico. possvel encaminhar o autor aos grupos reflexivos para entender o grau nocivo da violncia. Se a vtima no tiver para onde ir, se ela precisa de um acolhimento do estado, porque ela saiu fugida de casa, possvel colocar ela na casa de amparo, inclusive os dependentes.
Outro servio o acompanhamento dos policiais em casa para retirar os pertences. Ento, tudo isso, um servio que feito pelo sistema de Justia com esse primeiro atendimento.
Olha importncia! Quantos servios so disponibilizados para a mulher em situao de violncia domstica! importante que ela tenha esse conhecimento e busque ajuda.
Leiagora - No caso de um agressor que recebe a intimao da medida protetiva e continua ameaando e perseguindo a vtima. Quais aes so tomadas?
Mariell Antonini Dias -Eu gosto muito de falar sobre isso, porque a medida protetiva ela tem que ter efetividade. Ento, se o juiz proferiu uma medida protetiva, essa deciso no uma simples folha de papel, ela tem que ter efetividade, ela tem que surtir efeito, essa mulher ela tem que realmente estar protegida. Mas muitas vezes o autor fica obcecado, ele persegue a mulher, no aceita o trmino da relao e para esses casos s vezes a medida no funciona, ento importante que a vtima no fique com sentimento de frustrao e fale “a Lei Maria da Penha no funciona”, no, ela tem que vir na delegacia de polcia comunicar “doutora, eu pedi a medida, mas no funcionou, ele continua transgredindo contra mim”, porque o delegado tem condies de analisar e pedir a priso.
Ns temos no sistema da delegacia da mulher de Vrzea Grande nove pedidos de priso pendentes de anlise do Judicirio. Ento a vtima tem que entender que no funcionou volta e comunica o delegado, porque s assim que ns temos condies de representar pela priso preventiva, ou at mesmo designar uma equipe para fazer a priso em flagrante, se o crime tiver acontecido no mesmo dia.
No fique com sentimento de frustrao, volte e comunique para que ns possamos agir. Se voc no comunicar o crime fica perpetuando.
Leiagora - Em caso de mulheres que sofrem violncia e no denunciam com receio de magoar o filho, ou no tem como cuidar sozinha, ela deve permanecer em um relacionamento abusivo?
Mariell Antonini Dias - importante que a mulher coloque na cabea o seguinte: todo mundo merece viver sem violncia!Esse o primeiro ponto. Ns viemos no mundo para sermos felizes, vivermos sem violncia, ns somos mulheres de inspirao.Pelo menos uma pessoa na face da terra ns inspiramos que so os nossos filhos.
A mulher quando sofre violncia na frente dos seus filhos, ela no pode esquecer que alm dela ser vtima ela est deixando uma marca no filho, uma marca negativa de que ela aceita uma violncia e ao contrrio disso ns temos que ser pessoas de inspirao, pessoas que rompem os desafios, que rompem as violncias.
Eu sei que existem inmeros obstculos para voc sair de um relao violenta, relao abusiva. A primeira dela a dependncia afetiva, existe realmente amor, um vnculo entre as partes, ento realmente fica difcil romper esse vnculo. Muitas vezes tambm dependncia financeira, mulher nunca trabalhou, nunca saiu de casa, ou tem uma idade avanada. Mas existe a questo de lidar com medo de no conseguir cuidar dos filhos sozinha, vontade de manter a famlia de ter uma referncia paterna, que apesar de ser violento com a me, ele bom para os filhos. Ento tem vrias situaes que cercam toda violncia domstica.
importante que a mulher busque, sim, ajuda, porque ningum deve viver sob violncia. Como eu disse antes, a violncia s proguide, vai ficando cada vez pior at que chega ao ponto de um homem se achar no direito de tirar a vida da mulher e muitas vezes na frente dos seus filhos, que uma marca muito negativa. Ento toda mulher deve pensar nela em primeiro lugar.
Leiagora - Recentemente, noticiamos o caso da Jovem Emilly de 20 anos, que foi morta a facadas na frente do filho de 4 anos, pelo ex-namorado em Cuiab. Assim como ela no denunciou as ameaas e agresses sofridas por parte do autor do crime, sabemos que muitos casos de violncia domstica no Brasil as vtimas no denunciam. Por que acha que isso acontece? Existe um perfil comum entre essas vtimas?
Mariell Antonini Dias - uma srie de fatores, a violncia domstica diferente de outros crimes. Se eu sofro um roubo na esquina, imediatamente eu quero punio do autor, eu quero a recuperao do bem que eu perdi, eu quero reparao integral pelo prejuzo sofrido e eu quero a priso dele. E por que isso? Porque eu no tenho vnculo com o autor , eu no conheo.
Em relao violncia domstica no. A mulher tem um vnculo com o parceiro e ningum comea a se relacionar com uma pessoa abusiva, antes de chegar nessa relao de abuso, anteriormente houve uma relao de amor, houve uma conquista, ningum comea a namorar outro que agride no primeiro encontro.
No comeo do relacionamento tem a conquista, o envolvimento, o homem cavalheiro, ele puxa a cadeira, ele abre a porta, ele cuida dessa mulher, ele d tudo que ela precisa para ser conquistada. Posteriormente, aps a conquista, a ele pode realmente mostrar o que ele pretende daquela relao. Ele pode controlar, ele pode dominar, porque a j tem um vnculo afetivo. Ento o que realmente dificulta o rompimento da violncia domstica a primeira coisa, o rompimento desse vnculo afetivo, que muito forte.
Segundo ponto seria a modificao de pensamento. Infelizmente apesar de ter uma famlia, eu terei que criar os meus filhos sozinha, enfrentar questes econmicas, nova realidade, mudana de conjuntura, realmente uma mudana que a mulher tem que fazer. E ns sabemos que ns como seres humanos temos dificuldade a lidar com mudanas, isso do ser humano, ns temos dificuldade, temos medo do novo, mas esse medo tem que ser rompido e vencido para que a mulher possa viver sem violncia.
Leiagora – Quais orientaes voc d para as vtimas que por algum motivo no denunciam os agressores?
Mariell Antonini Dias - O que o relatrio da inteligncia da Polcia Civil constata que as vtimas que sofreram feminicdio a maioria no tinha medida protetiva. Ns tivemos 47 vtimas de feminicdio. Dessas, 45 no tinham sequer boletim de ocorrncia. Ou seja, elas estavam invisveis aos olhos do estado, que sequer tomou conhecimento das agresses que ela sofriam em casa. Ento o sistema de Justia no pode trabalhar por elas nesses casos.
Em Vrzea Grande, no ano ado foram trs feminicdios, sendo dois destes eram mes que sofriam violncia pelos seus filhos que eram dependentes qumicos. Ento, s vezes, a me fica com muita d do filho, no quer prejudic-lo, que um sentimento natural, mas no pode esquecer que esse filho pode sim evoluir e ceifar a vida dela, como aconteceu nesses dois casos que citei.
Ento importante procurar ajuda, confiar no papel do estado, na medida protetiva, buscar uma ajuda e solicitar essas medidas cautelares, porque realmente elas salvam vidas.
Leiagora - As medidas protetivas precisam ser renovadas algum tempo aps serem concedidas? Como feito o auxlio e amparo s vtimas durante a vigncia de uma medida?
Mariell Antonini Dias - Em regra, a medida protetiva tem um prazo de validade de seis meses. O Judicirio fixa na deciso e se houver ainda algum risco possvel renovar, se no automaticamente ela revogada porque a medida protetiva uma medida cautelar para guardar a mulher em situao de risco. Ento venceu o risco, realmente no existe mais, a mulher j est protegida, no existe mais necessidade da medida. Se no, se ainda subsiste o risco, a renovao automtica. O Judicirio entra em contato com a vtima, ela informa essa necessidade e h a renovao.
Leiagora - A senhora est frente da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher, e tambm est coordenando uma operao nacional de combate a crimes de violncia contra a mulher em Mato Grosso. Em nmeros, qual a realidade que vivemos em Vrzea Grande e no estado? Como est sendo este trabalho?
Mariell Antonini Dias - A Operao tria coordenada pelo Ministrio da Justia, ento ela foi desencadeada em todo o Brasil. Em Mato Grosso, a Polcia Civil coordena com a participao da Polcia Militar tambm. S em Vrzea Grande, a ao comeou no dia 27 de fevereiro e neste curto perodo s a delegacia cumpriu mais de 10 mandados de priso preventiva, um nmero significativo para poucos dias. E em mbito de estado, ns estamos com 74 municpios envolvidos na operao e at agora temos dados parciais porque ser finalizada na prxima semana.
Foram apurados mais de 210 denncias que foram feitas de forma annima. Em Mato Grosso, foram feitas mais de 70 palestras, viajamos para Cceres, Chapada dos Guimares e outras delegacias tambm viajaram para outros municpios para dar palestras, cumprimos mais de 120 mandados de busca e apreenso.
Alm disso, fizemos tambm prises civis por falta de pagamento de penso alimentcia. Infelizmente muitos pais depois que separam da me acham que a responsabilidade de cuidar dos filho s da mulher que tem que trabalhar um, dois, trs perodos para poder cuidar dos filhos e no assim n, filho no deixar de ser filho depois da separao.
Foram realizadas tambm prises preventivas, temporrias, medida protetiva de urgncia, foram solicitadas mais de 300 e foram lavrados mais de 60 flagrantes, ento a ao foi um sucesso.
Leiagora - Por fim, gostaria que a senhora falasse sobre a importncia de denunciar e como as mulheres devem ficar atentas aos sinais de perigo.
Mariell Antonini Dias -No fique com uma pessoa e na mesma semana j case com ela, namore bastante, namore 1 ano, 2 anos, conhea bem a pessoa, porque ns s conhecemos no dia-a-dia com a convivncia diria. A gente precisa conhecer como a pessoa, o jeito dela, como ela resolve os problemas, como se posiciona em determinadas situaes, isso muito importante.Voc tem que ter um panorama para se entregar em uma relao, uma avaliao exata e isso s vem com o tempo, ento avalie bem antes de casar para que no entre em uma situao dessa de um relacionamento abusivo.