A histria da pena mostra que a priso uma conquista da humanidade. No incorreto dizer que samos da vingana privada para a vingana social. Entretanto, pouco evoluiu o esprito humano, que ainda se regozija e se deleita com a desdita alheia. arraigado o pensamento de que o mal se paga com o mal, que a dor somente se aplaca com o sofrimento de quem nos fez sofrer.
Parece que, transcorridos mais de 2.000 anos da agem de nosso Salvador, quase nada a humanidade aprendeu sobre o amor e o perdo.
Pouco sofrimento no sacia a voraz fome de vingana de uma sociedade cada vez mais aterrorizada pelos discursos de dio que somente retroalimenta o crime e a reincidncia.
Esquecem-se de que os presos de hoje sero nossos vizinhos amanh.
A ressocializao no se faz por meio de castigos desnecessrios. A privao da liberdade a maior pena que pode sofrer quem infringiu as normas sociais. Esse sofrimento basta ao condenado, e nenhum outro mais tem o Estado o direito de acrescentar ao encarcerado colocado sob sua guarda e proteo.
E se o priva da liberdade porque abusou da liberdade.
A pena moderna se orienta no sentido de ser para o criminoso educao, no dor. Afora o carter punitivo/intimidativo, o efeito principal dela a ressocializao do condenado por meio da reforma da sua personalidade, dos seus valores morais e sociais, das suas inclinaes para o crime.
Vedadas a pena de morte e a priso perptua em nosso pas, nosso reencontro com os encarcerados tm data e hora marcadas na sentena.
A poltica de sofrimento e dor no contribui para a transformao do homem submetido ao reajuste dos valores que o levaram ao seu aprisionamento.
preciso ter em mente que a pena um meio para o bem, um instrumento no s de regenerao individual, mas de preservao[1].
Castigo desnecessrio embrutece e animaliza ainda mais o homem criminoso, que carece reformar o seu “eu” interior, deformado por conjunturas familiares, pela misria financeira, social e moral, pelo ambiente promscuo onde foi criado e forjada sua personalidade.
No conseguindo o governo brasileiro atacar as causas primrias da criminalidade, a poltica mais barata o discurso de endurecimento das penas, e da potencializao dos sofrimentos que a priso pode oferecer aos condenados, como se se pudesse transformar o homem por meio da imposio do medo.
A psicologia social, de h muito tempo, mostra que no se arrefece a criminalidade com o aumento, com a severidade ou com sofrimento das penas.
A pena no perde eficcia quando se faz mais benigna, mas anula seus efeitos quando cruel em demasia[2].
Tivessem nossos legisladores mais conhecimento de como se movimenta a natureza humana, compreenderiam que penas mais suaves, quando aliadas certeza da punio, produzem mais efeitos do que as severas.
O que atemoriza o homem a vigilncia e a certeza da punio. Alis, Beccaria, ao seu tempo, j vaticinava a certeza que hoje a psicologia social tem de que “no o rigor do suplcio que previne os crimes com mais segurana, mas acerteza do castigo, o zelo vigilante do magistrado a essa severidade inflexvel que s uma virtude no juiz quando as leis so brandas. A perspectiva de um castigo moderado mas inevitvel causar sempre uma forte impresso, mais forte de que o vago temor de um suplcio terrvel, em relao ao qual se apresenta alguma esperana de impunidade”.
No senso comum, reina a opinio equivocada de que a severidade das penas refreia as aes do homem com tendncias criminosas.
Mostra a psicologia social que aqueles que so ameaados com punio suave so os que desenvolvem a averso pela atividade proibida; pessoas que so ameaadas severamente ficam, no mnimo, ainda mais atradas pela atividade proibida[3].
Luiz Jimnez de Asa, na sua poca, j havia observado que a pena de morte no um bom meio de intimidao, e que a interpretao exata da experincia criminal leva ideia de que ela mais atrai do que intimida[4].
Prova disso o sistema americano, que no acalmou a criminalidade nos Estados que contam com pena de morte e priso perptua.
Tmulos de seres vivos
Se penas severas no sossegam a quantidade de crimes, h lgica em pensar que o sofrimento que v alm da privao da liberdade capaz de curar ou atemorizar o homem colocado em expiao no crcere?
O crime se situa sempre no ado e interessa apenas ao processo no exame dos fatos e da culpabilidade do ru. Depois de condenado, deve-se olhar para o futuro do apenado, para a sua recuperao e integrao na sociedade aps o cumprimento da pena.
No se podendo consertar o ado, deve-se preparar o futuro do homem privado da sua liberdade.
Basta-lhe essa pena! Nenhum outro sofrimento justo se lhe impor.
A priso, em si e por si, o nico e maior castigo que se permite infligir ao condenado.
falsa a ideia que amide se propaga, de que nossas prises so espaos aprazveis de recreao, de descanso, de luxo e prazer, verdadeirosresortsque desfrutam os criminosos mais abastados.
Esta uma prdica que faz eco na patuleia… e d votos.
Sem nunca terem lido qualquer livro de criminologia ou psicologia social, essesexpertsjulgam-se com autoridade bastante para se manifestar sobre o que conhecem apenas pela opinio do vizinho, do disse me disse. Normalmente so os que creem em tudo e em todos, at na mentira, e do f ao primeiro que se encontra na rua.
Falam sem conhecimento de causa, muitos deles sem ter nunca colocado os ps em uma priso, de ter ouvido o ganir dos prisioneiros, de sentir o odor do enxofre caracterstico do inferno, do cheiro de carne humana que se apodrece no sofrimento grantico e desumano do crcere. Ignoram as torrentes de lgrimas que l se vertem todos os dias e horas, decorrentes do arrependimento e da saudade apertada e dilacerante dos entes queridos que tambm choram em outros cantos.
Bem sei que tambm choram as vtimas e/ou familiares delas, pela vida perdida ou pela tranquilidade roubada.
Em nveis e graus diferentes, o crime produz vtimas de ambos os lados. uma guerra onde todos perdem, uns mais do que os outros.
Embora no se possa fazer comparaes, meu propsito contestar as baldrocas, as inverdades, as intrujices, as patranhas, as pataratas e patacoadas, as caraminholas, as fbulas, as petas, a prosa frouxa, mole e desfibrada de que as prises brasileiras sospaseresortsde criminosos.
De modo geral, so sepulcros de seres vivos!
Nelas, o ambiente de dor, de sofrimento, de tristeza e terror, de promiscuidade, de violncia sexual, de rebaixamento e aviltamento da personalidade j deformada do ser humano.
Pensam alguns ser infecundo reformar o penitente, advogando ser mais til destru-lo! Por isso, no podendo aniquil-lo fisicamente, eles o destroem moralmente, retirando-lhe o que conserva de mais precioso:a sua dignidade como ser humano.
Esta a mais cruel das vinganas.
Mantm-no vivo s para faz-lo sofrer. Ao invs de podar a rvore para ter bons frutos, derruba-lhe o tronco e arranca-lhe as razes para satisfao do desejo de vingana, sempre insacivel nos torquemadas modernos.
Enquanto a vingana tem seutposno ado, a Justia divisa o futuro do condenado, que no pode ser tratado sob vara de marmelo deitada sob a dignidade do ser humano. O co que muito apanha, finca seus colmilhos no prprio dono.
Bem sei ser ainda forte, no subconsciente da populao, a ideia de expiao da pena mediante sofrimentos. Deve sofrer porque fez sofrer!
As leis de Manu so inatas e vivas no inconsciente humano: “o castigo governa o gnero humano; o castigo o protege; o castigo vigia, enquanto os outros dormem”.
Infligir sofrimentos manifestao de sadismo, que tem na vingana, na necessidade de fazer sofrer, o outro lado da moeda.
Muitos ainda fazem coro com Hitler: “Devemos ser cruis, sim, somos brbaros! […] A conscincia uma inveno judia”.
Triste ver que o sofrimento do condenado aplaca a natureza humana, to embrutecida ainda.
Pena Justa
Nos dias atuais, trocaram-se os tormentos da pol e do ptro[5]por outros mais eficazes.
Agora se ferreteia a alma do homem naquilo que lhe mais caro e ingnito em sua natureza:sua dignidade de ser humano.
Mas justamente essa condio que impe limites a qualquer ao do Estado, inclusive a punitiva.
Digo exausto que o condenado perde apenas a sua liberdade e seus direitos polticos, nada mais! um cidado como outro qualquer, com direito educao, trabalho, sade e assistncia material que lhe assegure condies dignas de sobrevivncia no crcere, enquanto nele permanecer.
A condio de condenado no retira do preso o direito de ser tratado comrespeito e justia, que a sua condio de ser humano obriga a todos observar, principalmente o Estado, aos cuidados de quem colocado sob custdia.
A circunstncia de os nossos presdios estarem infestados por organizaes criminosas, constituindo mesmo verdadeirosbunkersdas suas lideranas – de onde comandam crimes –, no licencia o Estado a impor o cumprimento da pena em condies que importam em tratamento cruel, desumano ou degradante, proscritas pela Conveno Americana de Direitos Humanos (artigo 5,2).
De maneira geral, os nossos estabelecimentos prisionais so marcados por todo tipo de desventura aos encarcerados, provisrios ou definitivos, pela falta de estrutura e pela superlotao, a que se somam as pssimas condies de salubridade, a falta de assistncia sade, de fornecimento de material bsico, de medicamento e higiene – incluindo absorventes ntimos para as reeducandas –, da precria e insuficiente alimentao de baixo valor nutritivo.
A tanto, acresa-se o isolamento abusivo e as restries indevidas ao regime de visitas. Tal situao acaba por acarretar, ao fim e ao cabo, o cumprimento da pena em condies cruis, desumanas e degradantes. Alis, ao modo como reconheceu a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Yvon Neptune vs. Haiti.
O Poder Judicirio no pode mais continuar a fazer vista grossa a esses desbragados desrespeitos aos direitos humanos.
O Programa Pena Justa vem em boa hora.
Basta de vingana!