Poetisa, escritora e presidente da Academia Mato-Grossense de Letras: conhea a trajetria por trs da multiartista Luciene Carvalho 3t411e
Em entrevista ao Entret, contou sobre a sua infncia, famlia, inspiraes e preconceitos que j sofreu para agora ser a primeira mulher negra no comando da AML em 102 anos de histria 4c115n
Considerada uma das maiores personalidades de Mato Grosso, a poetisa, dramaturga, performtica e escritora, Luciene Carvalho, foi escolhida para participar da "A Histria por Trs do Artista" desta semana.
Recentemente, no dia 30 de setembro, Luciene foi empossada como presidente da Academia Mato-Grossense de Letras (AML) e se tornou a primeira mulher negra frente da instituio em 102 anos de histria. A escritora relatou ao Entret que sua me morreu antes de receber a notcia sobre o novo cargo: “enterrei minha me, 24h depois, eu ganhei”.
Nascida em um estado ainda unificado, em Corumb, a poetisa cuiabana desde 1974. Durante a entrevista, a multiartista ainda contou sobre sua trajetria na literatura, infncia, famlia, inspiraes e preconceitos que j sofreu.
Com 14 livros publicados, Luciene tambm diretora de teatro, formada pela MT Escola de Teatro (Unemat, campus Cuiab), inspirou espetculos de dana e de teatro e tema de pesquisas acadmicas.
Confira a entrevista completa:
Entret - Antes de vir para o presente eu queria que voc contasse um pouquinho da sua histria.
Luciene - Eu era uma pessoa comum do Mato Grosso do Sul, tudo era Mato Grosso na verdade. Eu nasci na regio de Corumb e depois fui morar em um lugar mais longe ainda, chamado Mista, meu pai cuidava da ltima estao de embarque de gado e minha me trabalhava no hospital da Marinha. Ento eu morei assim na fronteira, em que o Brasil j vai virando guas bolivianas e paraguaias. Eu sou da beira do Rio Paraguai.
Entret - Como era sua vida nessa poca? Tem irmos?
Luciene - Da minha me e do meu pai sou filha nica e minha me j tinha filhos do corao que caberiam num estdio. Todos os rfos do mundo esto na natureza dela de acolher e amar. Eu cresci em uma famlia bem mltipla, bem incomum. A gente vivia num lugar to longe, to distante de qualquer tipo entretenimento ou expresso cultural instituda e as coisas eram feitas no universo domstico familiar. Cedo eu mostrei pendores para as artes dentro de casa mesmo. Minha me organizando e algum no queria. Sabe aquela coisa clssica? A protagonista no quis e algum que estava por ali que era eu, com 2 anos e meio, falei que queria. Comecei a fazer essas coisas: arte cnica, peas pequenininhas e poesia. S que eu no sei sem poesia, toda vez que lembro de mim j tava dando poesia na escola, para receber as pessoas como parte dessa coisa da corte ao visitante, dar corte aquele que chega, muito intenso isso na regio pantaneira. Meu pai morreu quando eu tinha 8 anos e meio e minha me decidiu voltar para Cuiab, ela era daqui. E a veio para casa e para o quintal dos meus avs, no sentido de estriamento, mesmo.
Entret - Voc morando aqui, comeou a perceber que na Capital a cultura e a poesia so um pouco mais veis?
Luciene - Nada, tudo muito estranho, tudo diferente. O mapa e a riqueza cultural do Mato Grosso sempre foi multiplo. Eu cheguei em uma Cuiab mais Capital, mas eu era muito criana. Fiquei isolada no quintal e eu tive um episdio, acho que nunca contei isso na imprensa. Aos 13 anos tive um reumatismo e fiquei sem andar por um perodo e paralisei. E assim, tentaram benzetacil, tentaram at fazer eu nadar l na piscina da UFMT e um primo me chamou para fazer um teatro de bairro e eu sarei. muita verdade isso que estou te falando. Eu entendo que a arte curativa.
Entret - Depois desse episdio, qual foi o pontap inicial para comear sua carreira?
Luciene - Eu parei com tudo, fui para as escolas pblicas e fiz Escola Tcnica Federal e servio social na UFMT. E em algum momento fui me aproximando da literatura at que no dia da morte de Drummond tive um impacto. Eu, ledora de prosa, sempre fui algum que gostava de ler, me vi chocada com um chamado que no sei te explicar e comecei a escrever. Eu lia muita prosa, j tinha escrito alguns poemas na adolescncia e minha me falou que eu comecei a escrever depois que papai morreu. Eu ei de 87 juntando e vivendo um processo de fluxo, de intensidade de ocupao interna. A poesia foi ganhando territrios dentro de mim.
Eu ei algum tempo em Ribeiro Preto, pra mim foi como um exlio. Engraado que era como a gente via, era um exlio clssico do romantismo. Eu voltei para Cuiab com esses inscritos e estava tendo um festival livre de msica popular aqui na UFMT, eu ganhei primeiro e terceiros lugares. Era em 1992 e eu j estava com 27 anos. Isso me colocou diante de uma possibilidade que eu no conseguia assimilar. No ano seguinte eu ganhei o segundo lugar e o direito de publicao. A minha primeira publicao foi coletiva na UFMT por premiao e mais sete anos que tentei de todas as formas fugir disso. Em 2000 publiquei meu primeiro livro, em 16 dias foi indicado a um prmio crtica, ganhei e no parei mais. Mas a me organizei, eu convoquei a criana pantaneira para declamar, para vir comigo.
Entret - Voc acredita que esse o seu diferencial ter ado por essa vivncia de criana pantaneira?
Luciene - Acho que a declamao faz toda a diferena, eu estou falando tecnicamente com voc. Porque eu falo que estou falando tecnicamente? Porque um monte de gente no gosta de ler, no que no gosta de poesia. No tem fluxo de leitura e quando uso da oralidade potica, eu permito que as pessoas possam receber a poesia por esse rgo, por esse sentido ivo que o ouvido. Sempre pronto e disponvel. Eu cuidei de cenrio, figurino, de trilha, eu cuidei de apresentar minha poesia. Eu embalei minha poesia com a oralidade potica, para poder vender disso. Tem 22 anos que eu vivo da minha arte, 14 livros, centenas de shows em cidades como So Paulo, Londrina, Chile e assim vai.
Entret - Vamos falar um pouco sobre a sua obra. Voc tem ideia de quantas poesias j escreveu?
Luciene - impossvel contar. Porque cada vez que eu escrevo, os poemas vm mltiplos de trs. trs, seis e nove. Eu j escrevi 15 poemas um seguido do outro. Eu tenho nos meus cadernos de inditos, tenho uma linha voltada de inditos. Eu tenho esparramados livros com pedaos de poemas, um, dois, trs e seis. Parou, continua. So 14 livros publicados e o 15 , ns estamos finalizando, se chama “Saranzal”.
Entret - No dia 30 de setembro voc foi empossada como presidente da Academia Mato-Grossense de Letras (AML). Qual a expectativa para esse novo projeto?
Luciene - Nesse momento eu vou me dedicar a fazer gesto da Casa Baro de Melgao, onde a Academia Mato-grossense de Letras (AML). Eu vou estar l junto com uma equipe muito legal e linda. uma gente produtiva, notvel e brilhante que vem comigo. Isso me deu segurana para incorrer nesse risco para ter esse arrojo. uma gente que produz pesquisa, msica, teatro e produz muita literatura. Ento existe todo um grupo de pessoas que respalda e me encorajam para eu ter tomado essa atitude.
Entret - Voc a primeira presidente mulher negra em 102 anos de histria da instituio. Como est seu corao?
Luciene - Meu corao est no estmago, de tanto que ele cresceu. Eu fui me candidatar como forma de abenoar e de agradecer minha me. Sabe aquela mulher que nunca me pe para trabalhar nos servios que marcam, que moem. Sabe, ser bab, trabalhar como empregada domstica… No estou falando que so pessoas menores, mas so lugares de vulnerabilidade social pelo tratamento que recebem. E a minha me me permitiu que eu tivesse tempo. Eu fui concorrer quase como que para quitar essa fatura, para premiar.
Minha me morreu dois dias antes de eu ganhar. Na hora que eu enterrei minha me, 24h depois eu ganhei. Ento fico pensando que a minha me foi isca, sabe? Fico pensando que hoje eu honro todas as mulheres que fizeram a travessia da melanina, que vieram das fricas, que so vrias, em vrios pases. Que ocuparam por diversas vezes condies de dificuldades, mas elas sempre venceram alguma coisa a mais. Eu sou bisneta de uma parteira, minha bisav era parteira em Livramento. Minha av era uma mulher que fazia doce de limo e fazia rede. Minha me gostava de ler.
Entret - A sua paixo pela literatura veio da sua me?
Luciene - Foi na placenta. Uma das coisas que os pais ainda no entenderam que os filhos vo entender leitura por hbito. Ento como eles no veem os pais lendo, ler no faz parte do cardpio de coisas cotidianas. Ento voc v a sua me arrumando a sobrancelha e o cabelo e, seu pai indo trabalhar, sua famlia assistindo televiso. E isso se torna padro. Como que uma criana vai constituir padro se no v ningum lendo? Mas eu vi. Eu vi as irms, o irmo, cada um lia alguma coisa. Ento eu desenvolvi um paladar e um apetite desde a infncia, eu lia at a caixa de pasta de dente. A minha formao no clssica, constituda e organizada. A minha formao de fome, eu fui lendo tudo que fui encontrando pela vida. Eu sou aquela criana que nas frias emprestava livro da casa dos amigos, sentava em uma poltrona e aproveitava as frias inteira lendo. Eu me enchi disso, a literatura me preencheu. E os senes que a vida me trouxe depois, e eu quase me perco, de novo vem a poesia, me da cidadania e lugar social. E agora ela faz essa terceira onda, muito horroroso estar entre os meus pares que escrevem. No se engane, eu sou envaidecida por pertencer a casta literria da minha terra. Depois de chegar condio de presidente da Academia, uma honra. Porque uma carta de crdito que te dada. necessrio desenvolver trabalhos, muito bonito quando a gente entra, mas a gente tem que desenvolver trabalhos e eu estou comprometida com isso.
Entret - Voc j enfrentou preconceitos por ser uma mulher negra?
Luciene - Todos que voc imaginar. A melanina uma coisa que quando vem expressa na pele, atrai toda a valorizao cultural de uma sociedade. E o Brasil ainda no foi tratado da doena chamada de racismo. E vai demorar para tratar, porque as pessoas pensam que os sintomas no so da doena. Naturalizaram o racismo no Brasil de tal forma que as pessoas no enxergam e como no enxergam, no tratam ou mudam. A negao permite que se diga que esse no um pas de racista. Como um pas com quatro sculos de escravido, em 140 anos vai dar para tratar? Ainda mais com a negao, ainda mais com o colorismo e ainda mais quando os prprios negros exercitam o preconceito por eles. Porque ns temos isso. Ento, o que resolve? Porque a gente fica s no denuncismo, resolve primeiro uma atitude de auto amor e auto aceitao. Entender que difcil viver mesmo. Depois a gente supera a negao e se percebe e se entende inteiro. Por exemplo, tem palavras para mim que s so possveis no plural, como beleza, sade, inteligncia, tudo isso tem que ser plural, num pas plural como o nosso. Ento, um trabalho de casa, pessoal, interno, se gostar e tem que ter alianas. Ns temos que ter os aliados, a transformao das questes raciais no pas no vai se dar s com o movimento dos negros. de extrema urgncia que humanistas e pessoas esclarecidas se engajem nos movimentos anti racistas, na educao que do para os filhos, no estabelecimento de novas relaes de trabalho. Eu penso que a notcia, que a Casa Baro resolveu dar para o mundo progressista, saudvel, airada e celebrada.
Entret - Gostaria de saber como a Luciene em casa, no dia a dia. O que voc gosta de fazer? E de comer?
Luciene - Eu no vivo mais no gosto. Sou algum que h dois anos e meio ou por um infarto. A partir da estou construindo a minha relao com a comida. Percebi a compulso alimentar, hoje eu tenho uma nutrio diferente, bem longe do que eu gosto. J eliminei o acar, o carboidrato, o po, macarro, batata, mandioca, nada disso mais. Eu como legumes, frutas e castanhas. Ento eu sou algum pautada no que preciso, sou aberta a disciplinas novas. Ento eu cuido do quintal, moro na casa dos meus avs, cuido daqui, do meu companheiro, me trato dos diagnsticos no sentido da sade mental. A gente tem animais de estimao que cuidamos com muito zelo. Ns temos trs cachorros, dois gatos, um peixe e centenas de arinhos. um quintal muito grande e a gente preserva as casinhas. A casa de adobo ainda, eu tenho uma relao com essa Cuiab mais antiga que eu entendo que a cultura dos quintais cuiabanos muito saudvel. Eu brinco que no tem rf em um quintal, que as tradies culturais so preservadas em um quintal. Tanto que todo mundo est procurando condomnio horizontal, n? Que uma forma de quintal. Eu escrevo nas madrugadas sempre que possvel, s vezes a poesia vem e s vezes eu morro de saudade. s vezes ela nem liga pra mim. A poesia que comanda a coisa, no sou eu no. Eu tambm sou diretora teatral, dou aula na MT Escola de Teatro. A pouquissmo tempo, mas dou.
Entret - Em quais lugares voc costuma frequentar em Cuiab?
Luciene - Eu frequento o Mercado do Porto, o Cine Teatro Cuiab, Casa das Pretas, Misc. Eu frequento guas de cachoeiras, amo guas de cachoeiras. Acho que Cuiab um paraso, porque para alm dessa cidade quente, em qualquer direo que voc vai tem gua ainda e isso um prmio para o universo. Mas para procurar s o ar condicionado importante a gente se entender na natureza.
Entret - Voc tem alguma habilidade que poucas pessoas conhecem?
Luciene - A habilidade que eu tenho e escondo que eu bordo tapetes em arraiolo. Gosto de trabalhos manuais, desde voc mudar uma roupa, a colocar, e rejuntar coisas. Eu gosto das minhas amigas aqui do bairro, as meninas que me viram crescer e minhas parceiras de vida. Algumas so cuidadoras, outras so mulheres que fazem servios domsticos, eu mantenho relaes com elas. Eu sou apaixonada em artes plsticas, no consigo comprar quadros muito grandes, mas sempre que possvel a gente adquire pequenos ou ganha. Eu iro muito a arte de ocupar os espaos e visualidades.
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